Morro do Recuo

Fotografia

O Morro do Recuo situava-se no norte de Angola, em pleno coração da mata, num local quase inacessível, entre Santa Cruz de Macocola e a picada que ligava Quimbele a Quícua. A poucos quilómetros da fronteira de Angola com a República Democrática do Congo, era uma importante base de guerrilha da FNLA. Naquele local, algumas árvores com mais de cinquenta metros de altura ofereciam sombra e segurança aos guerrilheiros, porque impediam que fossem localizados do ar, pela FAP (Força Aérea Portuguesa).

Num raio de mais de 10 quilómetros não havia estradas nem picadas. Para conseguir chegar ao cimo do morro tínhamos que seguir os trilhos utilizados pelos guerrilheiros, que muitas vezes estavam minados, tornando a nossa tarefa muito difícil e perigosa. Para minimizar o perigo, caminhávamos ao lado dos trilhos, nunca utilizando duas vezes o mesmo percurso. Por vezes, era necessário abrir caminho recorrendo a catanas para cortar as lianas e outros arbustos de pequeno porte que impediam a nossa passagem. É que a mata era muito densa, era praticamente virgem.

Conta-se que aquele morro foi baptizado com o nome de Morro do Recuo porque as nossas tropas efectuaram diversas tentativas para desalojar os guerrilheiros daquele local e diversas vezes foram obrigadas a recuar, sem o conseguir. O objectivo foi alcançado finalmente, em 1971, na sequência de uma operação de grande envergadura na zona de Santa Cruz, denominada Golpe de Flanco, que decorreu entre 3 e 17 de Janeiro de 1971, envolvendo a 20ª e a 22ª Companhias de Comandos, apoiadas por helicópteros.

Após essa operação, os Altos Comandos Militares decidiram mandar construir uma picada entre Santa Cruz de Macocola e a picada que ligava Quimbele a Quícua a passar pelo cimo daquele morro. Assim, seria mais difícil a sua reocupação pelo inimigo e, caso isso acontecesse, com vias de acesso em condições, as nossas tropas fariam facilmente a sua limpeza.

Durante os trabalhos de construção da picada, quer a CART 2731 quer a Companhia de Engenharia, envolvidas na sua construção, ficaram instaladas na Aldeia Capitão, a cerca de 20 quilómetros de distância de Santa Cruz de Macocola.

Os elementos envolvidos na segurança e na construção da picada, após o dia de trabalho, pernoitavam na mata, no local de trabalhos, para dar protecção às máquinas e para impedirem que o inimigo, durante a noite, armadilhasse aquela zona. As máquinas envolvidas na construção eram, normalmente, três buldozers e uma máquina de terraplanagem.

Todos os dias, de madrugada, saiam do acampamento da Aldeia Capitão para a frente de trabalhos um grupo de combate da CART 2731 e elementos da Companhia de Engenharia, para render os elementos que estavam na frente de trabalhos e que regressavam ao acampamento.

Os trabalhos reiniciavam-se logo de manhãzinha, depois de alguns elementos do grupo de combate efectuarem o reconhecimento da zona, para se certificarem que o inimigo não tinha montado nenhuma emboscada durante a noite.

Havia necessidade de derrubar muitas árvores para construir a picada, algumas delas de grande porte, que exigiam a colaboração conjunta de duas ou três buldozers para as conseguir derrubar. Por isso, a construção da picada progredia muito lentamente, havendo dias que não avançava mais de duzentos metros.

Fotografia

Esta fotografia, gentilmente cedida pelo 1ª sargento Marcelino Valério, dá uma pequena imagem das dificuldades que se nos deparavam para a construção da picada.

Quando a picada se encontrava muito próxima do cimo do Morro do Recuo (a pouco mais de 500 metros de distância), decidi ir lá acima ver como era o antigo acampamento inimigo. Apareceram, de imediato, mais três ou quatro "cacimbados" que não quiseram perder o passeio.

Os restantes elementos do grupo de combate tentaram dissuadir-nos da aventura, alertando-nos para o perigo que a mesma representava, mas sem êxito. Estávamos decididos, seríamos os primeiros a chegar lá acima.

Assim, perante o olhar incrédulo dos restantes elementos do grupo, lá fomos morro acima, abrindo passagem paralela ao trilho que existia, com a ajuda de catanas, para nos precavermos de eventuais minas. A viagem até ao cimo do morro decorreu sem incidentes e demorou mais de uma hora.

No cimo do morro, onde até há pouco tempo tinha funcionado uma base do MPLA, existia ainda uma área limpa, em que se viam apenas árvores de grande porte em que as copas se entrelaçavam. Todas as lianas, arbustos e árvores de pequeno porte tinham sido cortadas. O sol dificilmente conseguia penetrar naquela zona, pelo que apesar das elevadas temperaturas que se faziam sentir, aquele lugar era aprazível. Do ar nada se via, o que protegia os guerrilheiros de ataques da Força Aérea Portuguesa. No cima do morro haviam, ainda, alguns abrigos naturais, género grutas, que davam protecção aos guerrilheiros, em caso de bombardeamentos.

A paisagem que se via do cimo do morro, por entre os troncos das árvores, era deslumbrante. Tudo o que se conseguia ver em redor parecia ser um mar verde. Era a mata verdejante, tão bela como traiçoeira, escondendo os mais variados perigos.

Demos uma volta pelo ex-acampamento e encontrámos vestígios a comprovar o seu abandono recente. Numa pequena gruta, que até há pouco tempo parecia ter servido de local de pernoita para um ou mais guerrilheiros, encontrámos um camuflado, em estado impecável, e caixas com restos de medicamentos.

Satisfeita a nossa curiosidade, empreendemos a viagem de regresso. Antes, porém, deixámos as nossas marcas no local. Fizemos uma fogueira no meio de um trilho e escrevemos, à catanada, as iniciais dos nossos nomes no tronco de algumas árvores.

Na madrugada do dia seguinte, o nosso grupo de combate foi substituído por outro, mas não achei que fosse importante dar conhecimento da nossa aventura ao alferes que comandava o grupo que nos substituiu.

Mal cheguei à Aldeia Capitão o Comandante da Companhia mandou-me chamar e perguntou-me se o meu grupo tinha detectado algo de anormal no dia anterior na frente de trabalhos. É que, segundo me informou, o alferes do grupo de combate que estava a dar protecção aos elementos da Companhia de Engenharia estava a pedir reforços, porque quando foi efectuar o reconhecimento da zona, detectou vestígios muito recentes do inimigo (árvores com letras desenhadas nos troncos e sinais de uma fogueira muito recente no meio do trilho).

Informei o Comandante que não havia qualquer problema porque o inimigo éramos nós e relatei-lhe a nossa aventura do dia anterior. Não vou aqui dar-vos nota da conversa que o Comandante teve comigo, prefiro deixar isso à vossa imaginação.

Hoje, reconheço que durante as nossas comissões de serviço cometíamos muitas imprudências (para não lhes chamar loucuras), que só não tiveram consequências trágicas por muita sorte nossa. É que, naquela altura, estávamos dispostos a tudo e quase nada nos assustava. Havia quem dissesse que o medo só existia no primeiro mês de comissão (fase de adaptação) e no último (quando a comissão estava quase a chegar ao fim e nos começávamos a mentalizar que tínhamos possibilidade de sair vivos daquele inferno). Alguns diziam que era efeito do cacimbo.

Franquelino Santos
Ex furriel miliciano - CART 2731
Angola, 1971

Última actualização em 2008-06-30
Actualizado por Franquelino Santos, Ex- Furriel Mil. da CART 2731