As minhas "baldas"

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Poderia considerar-me um revolucionário ou qualquer outra coisa parecida mas, confesso, o meu comportamento, à data, tinha muito mais a ver com o gosto pela boa vida, pelo prazer dos copos, das mulheres e dos ambientes mais cosmopolitas do que, propriamente, com qualquer sentimento político contra ou a favor da guerra, era coisa para a qual me estava perfeitamente nas tintas; tenho algum peso na consciência, apesar de tudo, porque tinha a noção de que as minhas “baldas” não obstante serem autorizadas e, muitas vezes, só possíveis porque os meus camaradas recusavam vir para a cidade gastar dinheiro ao serviço da Companhia, acabavam, no entanto, por os sobrecarregar em tarefas e serviços colmatando as minhas sucessivas ausências.

Vou contar uma pequena estória, das muitas, que se passou comigo:

Estávamos em Aldeia Capitão, na minha perspectiva a pior missão confiada à CART 2731, quer pela actividade que nos estava confiada, proteger a engenharia, quer pelas precárias condições do alojamento, para já não falar nas muitas noites que dormíamos, no mato e ao relento, a guardar as máquinas na frente de trabalho. Era Dezembro do ano de 1971 e a perspectiva de ali vir a passar o Natal e a passagem de ano era quase uma certeza pelo que havia necessidade de arranjar um qualquer estratagema para tentar fugir à situação, nem que fosse uma semaninha… Por mera coincidência, e sem qualquer efeito colateral, tinham-me aparecido, meses antes, uns pequenos quistos no pescoço, mais tarde vim a saber que o nome científico era de adenopatias, coisa que apesar de não me provocar o mínimo mau estar, eu entendi que, convenientemente explorado, poderia ser motivo bastante para ir a uma consulta médica a Sanza Pombo, a localidade mais perto e com estatuto de vila, o que, com um bocadinho de sorte e bem trabalhado, me poderia permitir lá passar o natal. Se bem pensei, melhor fiz já que não tive nenhuma dificuldade em convencer a hierarquia militar a autorizar-me a ir a Sanza Pombo à tal consulta médica, coisa que, a correr normalmente, seria motivo para uma semaninha…

Chegado a Sanza Pombo, sou presente à consulta de um alferes médico, maçarico, eu já estava com cerca de 19 meses de comissão, e descrevi-lhe um cenário mais ou menos negro: para além das tais adenopatias, perfeitamente detectáveis à apalpação, eu lá fui descrevendo uma série de efeitos colaterais: febre, dores de cabeça, cansaço, falta de apetite, etc., etc. O pobre do médico, na sua boa fé e acreditando, piamente, naquilo que eu lhe estava a dizer começa a redigir um exaustivo relatório para eu apresentar a um seu colega numa consulta a ser efectuada no Negage, cidade já de alguma dimensão e com muita coisa boa e apetecível, uma vez que ali em Sanza Pombo não existiam condições para fazer a despistagem da doença que a descrição do meu quadro clínico configurava e que era, segundo o médico, nada mais nada menos, do que uma Mononucleose Infecciosa…

Alguns dias depois, já com a certeza de que o natal, na pior das hipóteses, seria passado em Sanza Pombo, o Mário Pinelas é presente a uma consulta médica, agora um capitão médico, fazendo-me acompanhar do exaustivo relatório emitido pelo nosso alferes médico… O capitão médico começa a ler o relatório, franze o sobrolho e quando eu me preparava para, na primeira oportunidade, “aligeirar” o quadro clínico confessando, com receio de ser apanhado na “curva”, de que já me sentia melhor, de que tudo parecia estar a voltar á normalidade, o bom do capitão médico chama o sargento enfermeiro e ordena a minha evacuação urgente para Luanda… Fiquei sem palavras, e comecei a temer o pior: ou estava mesmo doente, o que era mau, ou a aldrabice que montei foi de tal modo convincente que um dia descoberta teria sérias consequências para mim.

No dia seguinte vejo-me metido num Noratlas que, além de mim com uma hipotética doença que eu não sabia como havia de sair dela, ia cheio de feridos em combate; chegados ao aeroporto de Luanda, um sábado à tarde, observo várias ambulâncias na pista, pensava eu, para transportar os feridos em combate… sim, é verdade, havia as ambulâncias para os feridos mas havia, também, uma ambulância para levar o “doentinho” Mário Pinelas para as urgências do Hospital Militar de Luanda. Presente a uma primeira consulta no banco de urgências do hospital, depois de uma breve observação e lido o relatório clínico que me acompanhava, não obstante eu ter afirmado a ausência de qualquer sintoma anómalo, o médico que me observava decide-se pelo meu internamento no hospital. Bom, nesse momento comecei a pensar o pior relativamente ao meu estado de saúde… Será que estava mesmo doente apesar de tudo ter começado por uma artimanha minha? Ordenado que foi o meu internamento, eu estava fardado e deslocava-me, normalmente, pelo meu pé, perguntei a alguém onde era a enfermaria, alguém que não sabendo do meu diagnóstico mas tendo como interlocutor um furriel, me dá a indicação da enfermaria dos sargentos, já que havia uma outra para oficiais e, naturalmente, uma para praças…

Chegado à enfermaria dos sargentos, apresentei-me a um sargento que estava de serviço e que me indicou uma cama para eu ficar, cama onde passei uma das piores noites da minha vida em Angola invadido por um sentimento de grande preocupação, misto de uma eventual doença que poderia ter, ainda que sem qualquer sintoma e, sobretudo, de como poderia acabar toda aquela estória uma vez descoberta a verdade.

No dia seguinte, logo pela manhã, entra um médico pela enfermaria a dentro, aos berros, dizendo: este homem daqui para fora, este homem não pode estar aqui! Este homem vai já para as infecto-contagiosas! Os lençóis da cama deste homem já para a desinfestação! Bom, ao ouvir aquilo fiquei para morrer, seguramente estava mesmo doente e a doença, tendo presente toda aquela reacção, seria mesmo muito grave.

Uma vez chegado à enfermaria de infecto-contagiosas, agora já sem distinção de patentes, colocaram-me num quarto com outro furriel, deram-me um prato e um copo em alumínio e um talher recomendando-me que aquilo serviria exclusivamente para mim, não poderia utilizar outros nem deixar utilizar aqueles. Ali passei o domingo pensando na situação dramática em que estava envolvido: de uma consulta em Sanza Pombo, mais uma “balda” pensava eu, via-me internado no Hospital Militar de Luanda, depois de uma evacuação, em noratlas, de Negage para Luanda na enfermaria de Infecto-contagiosas, em quase total isolamento…

No dia seguinte, segunda-feira, sou observado na enfermaria por um tenente médico, o Dr. Champalimot que além de médico no Hospital Militar era também professor na Faculdade de Medicina de Luanda. Às perguntas feitas pelo Dr. Champalimot, mais tarde vim a encontrá-lo como director do Hospital Egas Moniz em Lisboa, lá lhe fui respondendo sempre aligeirando o quadro negro inicialmente traçado ao médico de Sanza Pombo, de que tudo estava melhor, não havia febre, o apetite tinha voltado, dores de cabeça nem pensar e o cansaço fazia parte do passado…

O bom do Dr. Champalimot ouviu com atenção as minhas observações mas dada a sua qualidade de professor universitário e, ao que ele dizia, a raridade da doença, decide que eu deveria fazer uma série de exames no Hospital Universitário solicitando a minha autorização para ser observado por alguns dos seus alunos finalistas; lá fui por duas ou três vezes ao Hospital Universitário fazer as análises de Paul Bunel, salvo erro assim se chamavam e eram feitas com células de carneiro, e na última das vezes vi-me deitado numa marquesa rodeado de finalistas de medicina, muitas caras bonitas e corpos esculturais, apalpando-me o pescoço, as virilhas, os sovacos, enfim, tudo o que era sítio o que só não me fez desatar a rir porque na altura eu já estava seriamente preocupado com a situação…

Alguns dias depois, talvez semanas, o Dr. Champalimot já cansado de andar à procura de uma doença, a tal Mononucleose Infecciosa, que eu nunca tive, declara que não me encontra nada e pergunta-me como é que eu me sinto ao que eu respondi estar bem e que tudo havia passado. Insistindo na pergunta se eu estava melhor no hospital do que na companhia, pergunta à qual respondi que sim, ele então diz-me: olhe, deixe-se ficar, enquanto eu o puder aguentar aqui você vai ficar…

Durante o “internamento”, eu entrava no hospital por volta das oito horas da manhã e saia antes do meio-dia, tempo para a revista de rotina aos doentes e, dada a proximidade do natal, ser assediado pelas senhoras do Movimento Nacional Feminino que, diariamente, me visitavam e deixavam maços de tabaco, isqueiros e outros presentes além, naturalmente, dos estímulos à minha rápida recuperação… Abri uma excepção e voltei um dia à noite ao hospital já que houve um grande espectáculo de variedades a propósito da quadra natalícia em que a principal vedeta era nada mais, nada menos do que a saudosa Amália Rodrigues.

A minha “recuperação e convalescença” foi feita na mui cosmopolita cidade de Luanda, para mim a cidade com melhor vida nocturna de todo o Portugal, onde tinha uma apartamento alugado no Hotel KateKero, no Largo Serpa Pinto, almoçava e jantava nos melhores restaurantes e cervejarias e à noite, inevitavelmente, fazia o périplo dos bares e boites desde a Gruta passando pela Tamar e acabando às três ou quatro da manhã no Veleiro comendo uma sopa de feijão… Nestas minhas andanças nocturnas tomei conhecimento com a Sheilla e o seu irmão Alex, hoje Mister Gay, um homossexual assumido mas já, à época, um senhor na verdadeira e total acepção da palavra.

Um dia pela manhã, e já havia decorrido cerca de mês e meio, numa das habituais revistas, sou abordado pelo Dr. Champalimot que depois de me interrogar sobre o meu estado físico e psíquico, perguntas às quais eu respondi, com um sorriso de orelha a orelha, de que me encontrava bem, me diz que era chegado o dia da minha alta já que não existiam condições para me aguentar ali por mais tempo. Agradeci-lhe toda a atenção que teve para comigo, deixei o hospital e fiquei a aguardar transporte para o Ambriz já que, entretanto, a companhia já havia terminado a sua missão em Santa Cruz.

Desde que saí de Aldeia Capitão, algures nas matas de Santa Cruz no noroeste de Angola, até regressar ao seio dos meus camaradas de companhia já no Ambriz, passaram-se mais de dois meses…

É por esta estória, e algumas outras, que eu afirmo que passei os piores momentos da minha vida mas foi, também, a época em que passei pelas situações mais agradáveis, sendo dessas situações que eu guardo, inevitavelmente, as melhores recordações…

Mário Pinelas
Ex furriel miliciano - CART 2731
Angola, 1971

Última actualização em 2009-12-21
Actualizado por Franquelino Santos, Ex- Furriel Mil. da CART 2731