INICIAL

RONDAS DA MILÍCIA

Após os trágicos dias 15 e 16 de Março, e até à chegada dos primeiros grandes contingentes militares, a bordo do paquete «Niassa» e do transatlântico «Vera Cruz», durante essas 8 semanas de vigília e de perigo mortal, às milícias civis coube a tremenda e gloriosa tarefa de suprir a aflitiva carência de forças armadas na Província. E actuaram por toda a parte. Até em Luanda, nos dias de maior tensão, o tombar duma tábua, o bater de uma porta, um simples espirro mais alto faziam convergir dezenas de armas aperradas…

Mas foi nas povoações do Norte, nos pequenos e isolados núcleos da incrível resistência portuguesa – foi aí que as milícias ganharam a primeira fase da batalha de Angola.

No Quitexe, reagindo ao espantoso horror dos massacres de mulheres e crianças; em Santa Cruz, cercada durante meses pela selva, pelo nevoeiro e pelos terroristas; na Damba onde, na noite de 8 de Maio, às milícias da vila se juntaram dois membros do Governo Central: o prof. Adriano Moreira e o Coronel Kaulza de Arriaga; em Maquela do Zombo, em S. Salvador, no Quimbele, no Ambriz, em Negage, no Songo, em 31 de Janeiro, no Mavoio, em Cangola, no Quitexe, em Camabatela – por todos os centros populacionais do norte onde havia alguns homens e algumas armas, a acção das milícias assume iguais aspectos de portuguesismo estreme e de bravura indomável.

Mas, desses dias terríveis e gloriosos, ficou-me a impressão, profunda e comovida, de que a intervenção dos civis, no seu carácter espontâneo, impulsivo, generoso, heróico, portuguesíssimo, teve a sua expressão culminante na defesa da cidade de Carmona.

- «Cercam-nos muitos milhares de terroristas. Não sei se daqui a uma hora estaremos vivos. Mandem-nos armas e munições! Depressa, por amor de Deus!»

Assim telefonava da cidade do café, logo a seguir aos massacres de Março, um velho e honrado colono.

Luanda não lhes mandou as armas, porque as não tinha nem para a defesa própria. Mas os homens de Carmona aguentaram-se.

Manter ilesa, no meio daquele círculo de feras enraivecidas, a mais jovem e mais expressiva cidade do Congo Português representa, nas circunstâncias em que se deu, um feito épico, quase um milagre. E esse milagre é legítimo título de glória das milícias.

Bem sei que não se deve considerar como acção isolada. A resistência de Carmona integra-se na estupenda resistência das populações do Norte que, preservando os pontos vitais do Congo Português, salvou todo aquele vasto território para a soberania nacional e vedou aos terroristas o caminho de Luanda e do mar. Mas Carmona parece-me, neste vasto panorama de heroísmos, o quadro mais valioso e significativo.

Mucaba é epopeia autêntica, uma quase loucura, a vitória da esperança contra toda a esperança, a realização do impossível, a evidência do inacreditável! Mas a defesa de Carmona constitui uma necessidade vital.

A perda de qualquer dos principais núcleos populacionais da zona afectada – Negage, Sanza Pombo, Damba, Maquela do Zombo, S. Salvador, Nóqui, Úcua, Quitexe – teria sido um rude golpe estratégico e psicológico. Mas a queda de Carmona em poder dos bandoleiros seria uma punhalada no próprio coração do Congo Português, com fatais repercussões internas e externas. Carmona já não seria uma capital ridícula do terrorismo, como o foi Nambuangongo. E tornaria mais fácil, para os facínoras, aquele reconhecimento oficial que a pérfida hipocrisia soviética tanto desejou outorgar-lhe…

Desta catástrofe nos salvou a intemerata bravura dos homens de Carmona.

Da tropa então aquartelada na cidade, a maior parte teve de ser destacada para outros centros nevrálgicos, onde o perigo era ainda maior. Os pelotões que ficaram, desfalcados de efectivos e pobres de armas e munições, constituíram naturalmente o núcleo disciplinado da defesa. Mas julgo poder afirmar que, nessa fase inicial, o maior peso da tremenda tarefa recaiu sobre os civis. E todos os homens válidos se transformaram repentinamente em soldados. Bravos e magníficos soldados!

Não tinham senão poucas carabinas para caça grossa, algumas escopetas de cano de alma lisa e velhos revólveres e pistolões que encravavam ao primeiro tiro.

Faltava balas e cartuchos.

Recorreu-se, pois, aos grandes meios: encabaram-se, em longos chuços, catanas de bom gume; improvisaram-se lanças com facas de cozinha cravadas na ponta de compridos paus; afiaram-se espetos com a verguinha de ferro das construções paralisadas; utilizou-se, quando já não havia mais nada, o rijo fueiro ou a pesada moca reforçada com pregos caibrais.

Foi esta danada gente, assim armada de qualquer maneira, com os nervos crispados pelas imagens trágicas de mais de mil brancos assassinados, com a vontade tensa pela iminência dum perigo mortal, clamando às armas no valoroso «Jornal do Congo», sacudida de horror, decidida e intemerata, cheia de raiva, possessa de heroísmo. – foi essa gente que manteve à distância, durante longas semanas, o círculo ululante das hienas…

E foi ela também que, num dos primeiros dias de Maio, cintada de cartucheiras, de espingarda ao ombro, uma bandeira nacional à frente, içada nos braços rijos de dois milicianos, prestou ao prof. Adriano Moreira e ao General Kaulza de Arriaga, a mais expressiva e mais honrosa escolta que alguma vez tiveram, em terras de Angola, os ministros do Governo de Portugal…

Certo ou errado, é assim que vejo e sinto a grandeza da acção das milícias de Carmona. E só por isso, localizo na linda e activa cidade do café os singelos episódios em que presto homenagem às milícias de toda a Angola.

*

Um homem do Quitexe tinha chegado, a toda a velocidade da sua carrinha Ford.

- Horrível! – anunciou ofegante, arregalando os olhos pávidos – Fizeram uma sangueira espantosa. Os que restam resistem. Mas há feridos de gravidade. Venho buscar um médico…

- Vou eu – disse logo um agricultor, que também era um bom cirurgião. – Quem quer vir comigo?

Ofereceram-se vários homens. O doutor escolheu um sujeito solteiro, alto e magricelas, com uma cara de pau a trair a rijeza da vontade. E partiram.

As horas foram deslizando, na infatigável dobadoura do tempo. Anoiteceu. Mas, na cidade de Carmona, ninguém dormia…

*

- Não ouvem? – perguntou um dos da ronda, entroncado e baixote, rolando nas órbitas os pequeninos olhos desconfiados.

- Claro que ouvimos – respondeu um tipo alto e moreno, de mãos fincadas na cintura, com os polegares entalados por debaixo da cartucheira bem municiada. - Só os mortos é que estão dispensados de ouvir esta batucada diabólica!...

- Não é o batuque – esclareceu o primeiro. – É, no meio do tam-tam e da gritaria, aquele ruído esquisito: «css-css…css-css…» Não ouvem?

Todos os da ronda apuraram o ouvido, com as mãos em concha atrás das orelhas, investigando os sons que vinham das trevas envolventes.

- Você está a sonhar! – concluíram depois de atenta escuta. – Não há nenhum «css-css…».

- Pois eu ouço-o perfeitamente – teimou o homem. - «Css-css…» Parece que são eles a afiar as catanas…

- E se calhar são mesmo… - concordou vagamente um dos rapazes do «Jornal do Congo», meio a sério, meio a brincar. – A rezar o terço é que esses patifes não estarão concerteza!... Que a verdade é que eu sou ouço o batuque…

Mas, instintivamente, todos voltaram a escutar, num silêncio mais completo, com uma atenção mais concentrada…

Dos morros circundantes chegava até à cidade cercada, boiando no ritmo obsidiante do batuque, o ulular monótono dos facínoras. Era uma toada horrenda e bárbara, feita de grunhidos, urros, guinchos e clamores, misturando-se e fundindo-se num feixe de ódios, cobiças e instintos transformados em sons que adquiriam, através da noite escura e sinistra, uma estranha ressonância de apocalipse, a denunciar à cidade a proximidade de catanas ensanguentadas.

Os homens da ronda, despertos e sem medo mas com os nervos crispados pela contínua tensão, sabiam que, naquele uivar cantado de hienas famintas, bramia a crueldade hedionda dos esquartejadores de mulheres e crianças, e a luxúria animalesca dos estupradores de meninas de seis anos, e o ódio alucinado e gratuito dos que esperavam fazer a Carmona a capital do terrorismo…

- Raios os partam, mais à sua excomungada ladainha do inferno! – explodiu um comerciante, rubro de cólera, mudando a caçadeira dum ombro para o outro. – Isto rilha os nervos duma pessoa!

- Tanto ladram que se lhes há-de acabar o fôlego! – comentou outro, mais sereno e confiado.

- O que me mete raiva – disse um administrativo – é termos de estar assim, à espera que ataquem! Se ao menos houvesse armas e munições em abundância, para se poder ir por aí fora e varrer toda essa canalha…

- E, afinal, a tropa vem ou não vem? – perguntou um agricultor.

- Não sei – respondeu-lhe um miliciano já na casa dos cinquenta, a quem todos chamavam carinhosamente o «doutor». – Parece até que ninguém sabe… Quando chegarem, cá nos hão-de encontrar…

- Vivos ou mortos… - acrescentou o agricultor, num tom amargo, embora resoluto.

- Mais vale não pensar em coisas tristes… - proferiu serenamente o administrativo.

- Pois é… - sublinhou gravemente o comerciante. – Mas a propósito, o médico e o companheiro ainda não voltaram do Quitexe. Deus queira que não tenha havido azar!...

O augúrio ficou a pairar interrogativamente no pensamento de todos, gerando um novo silêncio… Reviam a figura do clínico, ao lado do parceiro que ia ao volante, acomodando entre os pés a maleta dos instrumentos cirúrgicos e a caixa de medicamentos. Viam-no no exacto momento da partida, depois de puxar uma bala ao cano da carabina, sentindo o perigo mas fingindo ignorá-lo, ao despedir-se com um sorriso que lhe atenuava a palidez do rosto:

- Até logo!

- Até logo …

E o «jeep» arrancara, acelerando brutalmente, no rumo do Quitexe. O dia passara. A noite descera. Eram agora quatro horas da manhã – e eles sem voltar …

Que lhes teria acontecido? …

A velocidade é a melhor defesa! – dissera o do volante, carregando no acelerador.

- …E o melhor processo de ficarmos reduzidos a cisco, dentro duma vala ou contra uma árvore atravessada no caminho … - acrescentou o doutor.

- Eu sei. Mas temos de arriscar. Antes o trambolhão definitivo do que o gume das catanas! – teimou o condutor, sem abrandar a marcha.

Assim lançados em corrida de desafio com a morte, galgaram em menos de meia hora os quarenta quilómetros que os separavam de Quitexe.

Pelo meio-dia, o médico tinha acudido a todos os feridos. Extenuado, com os nervos sacudidos pelo espectáculo de tanto sofrimento, almoçou à pressa, com o pensamento nos brancos e nos bailundos da sua plantação, situada a poucos quilómetros dali. E falou da sua intenção de ir até lá, num salto, ver como corriam as coisas …

- Nem pense nisso! – aconselhou o sargento que comandava a insignificante força militar aboletada na vila. – Para o norte da estrada, é um vespeiro de terroristas!

- Podia fornecer-me alguns soldados … - sugeriu o doutor.

- Podia, como?! – exclamou o sargento, abrindo enervadamente os braços. O doutor acha que uma dúzia de soldados é demais para defender a vila?! Não posso deixar esta gente à mercê dum novo ataque. A malandragem ronda por aí, nas cercanias. Mais hora menos hora, ataca …

- Bastavam-me dois homens …

- Tenho muita pena, mas é impossível. De resto, as ordens que me deram são claras e terminantes: não sair do Quitexe e defender a vila até ao último homem …

- Pois eu não me ralava nada de ir com o sr. Doutor – disse um cabo miliciano que assistia à conversa.

- Está a ouvir, meu sargento? – interveio o médico. – Há mais quem seja da minha opinião …

- Mas o doutor teima em ir à roça?!

- Claro que teimo. Só ou acompanhado, vou!

- É uma loucura.

- É uma obrigação! Tenho de acudir à minha gente …

- A sua gente … - murmurou o sargento. – Não o quero desanimar, mas para aquelas bandas foi medonho …

Duvido que chegasse a tempo …

- Isso já não depende de mim. Faço o que posso.

- Vai arrisca-se inutilmente …
- Talvez … Mas vou. Cede-me ao menos o cabo com uma pistola-metralhadora?

- O que devia era impedi-lo de partir …

- Só prendendo-me … - gracejou o médico. – E eu tenho, no exército, um posto superior ao seu… Não sei se sabe.

Por acaso, o sargento sabia. E admirava aquele cirurgião de boa clientela, que se fizera agricultor e agora não desistia de acudir aos seus empregados, metendo-se à mata inçada de facínoras, depois de passar toda a manhã entre os mortos e feridos da horrível chacina …

Acabou por lhe dar o cabo, com a pistola-metralhadora, e dois soldados nativos, armados de velhas carabinas.

E foram. E, incompreensivelmente, voltaram ilesos ao Quitexe, sem mais incidentes que uns tiros de canhangulo, ao pé dum pontão destruído, tiros disparados à toa, que não atingiram ninguém e foram respondidos pelo cabo, em curtas e raivosas rajadas de metralhadora para os recessos mais escuros da mata.

Tinham encontrado, a meio caminho, os dois empregados brancos da roça, que informaram lá ter deixado, bem decididos a guardá-la, os bravos e leais bailundos.

Jantaram no Quitexe e ali ficaram ainda, durante algumas horas, porque um dos feridos piorara, requerendo operação urgente. E já passava das duas da manhã, quando, largando o bisturi e despindo a bata branca, o médico resolveu voltar a Carmona.

- A estas horas?! – estranhou o chefe de posto.

- Nós cá nos entendemos – declarou o condutor do «jeep» - A estas horas, os terroristas não nos esperam …

-E olhem que, bem vistas as coisas, não é mal pensado! – comentou um comerciante.

- Ora! – declarou outro civil, encolhendo os ombros. – Nisto de vida e de morte, acontece o que tem de acontecer. Nem vale a pena andar com cautelas.

Sem mais trocas de palavras, o doutor e o companheiro subiram para o «jeep» e partiram …

… Partiram precisamente à hora em que, naquela ronda de milícias, em Carmona, a sua recordação vivia no pensamento de todos, já inquietos por tão longa demora, já receosos do que lhes teria acontecido …

*

- Aí vêm eles! – exclamou alegremente um dos homens da ronda, apontando, lá longe, através do capim alto, o clarão dos faróis dum automóvel. E, porque nesse preciso momento começou a ouvir-se o estampido inconfundível dos canhangulos, logo respondido pelo estalar seco dos tiros de carabina, acrescentou noutro tom:

- Bonito! Lá começa o sarilho. Atenção!

Sem mais palavras, um deles correu a avisar a tropa e a dar alarme às milícias. Os outros, meteram afoitamente à estrada, ao encontro dos dois focos luminosos que rapidamente se aproximavam.

- Alguém ferido? – perguntaram, cercando o «jeep» que estacara.

- Tudo bem! Informou o doutor. – Mas os arredores fervilham de malandragem.

- Ouvimos uns tiros … - insinuou um repórter do «Jornal do Congo».

- Sim: tivemos a honra dumas salvas de canhangulo … E respondemos, como é da etiqueta …

- Mataram alguém?

- Sabe-se lá … Sumiram-se no capim e nós não tivemos tempo para inspecções.

- Eram muitos?

- Nós vimos apenas um bando, que tentava barrar-nos o caminho, no porco trabalho de arrastar um tronco de árvore para o meio da estrada. Mas tenho a certeza que andam por ali aos milhares. Não se avistam. Mas pressentem-se. Sentimo-nos no meio dum vespeiro … Farejam, como hienas famintas, à roda de Carmona. Suponho que não tardam a atacar. Convém avisar toda a gente. Nós damos um pulo a casa e voltamos já …

As notícias dos recém-chegados, corroboradas pelo facto de terem sido atacados mesmo às portas de Carmona, alvoraçaram a cidade.

Todos os homens válidos se aprestaram para a defesa, começando imediatamente a convergir para as zonas vitais, de antemão conhecidas.

Aconteceram coisas espantosas.

- Ele, vocemecês para onde vão? – perguntava uma velhota aos vizinhos dum bairro periférico.

- Vamos para a zona que nos foi indicada, ali para as bandas do Hospital. Mas temos de ir todos, que se espera um ataque dos terroristas.

Venha daí!

- Venha daí! Remedou a velhota. – Boa vai ela, a mais o convite desalmado. Atão vocemecê não sabe que o meu homem está tolheito numa cama? Como é que ele há-de ir por aí fora, a estas lindas horas? - é verdade! Concordaram os vizinhos, consternados. – Nem nos lembrámos disso. Mas, nesse caso, temos de ficar todos!

E ficaram, decididos a defender o entrevado e todo aquele bairro suburbano.

Ao grupo da ronda, não tardou em voltar o doutor com o seu parceiro da viagem ao Quitexe. Já então tinham chegado ao local umas boas dúzias de milicianos. E, para enganar a tensão que os oprimia, galhofavam a propósito da estranha mudança operada num dos presentes, logo após as trágicas notícias do dia 15.

- Nunca mais o vimos toldado! – chalaceava um empregado do hotel.

- Enjoou o vinho – explicou o encarregado duma bomba de gasolina, piscando o olho aos demais …
- Se calhar, lembra-lhe a cor do sangue dos terroristas – acrescentou um terceiro.
O visado afastou-se, muito sério, fugindo à chacota. E o doutor quis saber se aquilo era a sério.
- É verdade que o homem deixou de beber?!
- Tão verdade como estarmos aqui! – garantiram dois dos presentes.
- A partir daquela manhã – e já estava bêbado quando chegaram as notícias de Quitexe – tornou-se lúcido como um lente de Coimbra e nunca mais provou álcool … É sempre o primeiro a aparecer, no seu turno de ronda. Oferece-se para as missões mais perigosas. Está a ser um exemplo para todos …

O médio ouvia, em silêncio, numa surpresa crescente. Conhecia, desde há longos anos, aquele autêntico «garrafão». Baldadamente tinha tentado, por diversas vezes, arrancá-lo ao vício tirânico. Pelas oito da manhã, já andava bêbado. E assim se conservava até ir para a cama.

Mas agora, repentinamente, perante o perigo mortal que rondava Carmona, o alcoólico inveterado emergia vitoriosamente do seu vício, readquiria a segurança dos passos, a firmeza da vontade, o sentido das responsabilidades e, pegando na carabina, alinhava nas milícias, sóbrio, valente, resoluto, bom entre os melhores!
- Impressionante! – concluiu o médico, resumindo os seus íntimos pensamentos.

Mas um emissário chegava, enervado, anunciando que para os lados do Bairro Montanha Pinto, já se avistavam os terroristas, a avançar. Do nascente, começava a definir-se um pedaço de céu, visível através dum rasgão das nuvens e trazendo no seu alvor difuso, o primeiro anúncio do sol. Alvorecia …

No mistério do dilúculo, sempre renovado e maravilhoso, os milicianos notaram algo de novo e singular. Que era? … Ah! Agora compreendiam … Era o silêncio. Tinha cessado bruscamente a batucada infernal. E havia agora, em volta da cidade, um silêncio total, esquisito, pesado, sinistro …

Depois, ouviram-se apitos, partindo de vários pontos do capim. E recomeçou o alarido. Era agora um clamor intencional, compassado, obsidiante, medonho:

Upa! Upa! … Mata! Mata …
Upa! Upa! … Mata! Mata …

Era o ataque …
Vinham principalmente do lado do posto transformador, no evidente intuito de cortar a energia eléctrica à cidade. Avançavam em massa compacta, com o seu estranho fardamento – meia branca, sapato branco, calção azul, torso nu – e os da frente saltavam em cabriolas desengonçadas e grotescas, urrando sempre:

Mata! Mata!
Mata! Mata! …

Da esquadra da polícia, começou a crepitar o fogo duma metralhadora. Os homens da PSP, que em tantas zonas do norte angolano, estiveram na primeira linha dos primeiros combates, enfrentavam os facínoras com a sua habitual bravura. E as primeiras filas dos atacantes tombaram como a erva contra o fio da gadanha. Mas os restantes continuavam a marchar, olhos a saltar das órbitas, possessos do demónio do ódio, presos na rede maldita da liamba, insensíveis, alucinados, sempre ao compasso daquelas palavras sinistras:

Upa! Upa! …
Mata! Mata! …

Inabaláveis no seu posto, os valentes guardas da polícia, passados os primeiros momentos de excitação, combatiam agora com uma estranha e fria determinação, suprindo em heroísmo a escassez das munições. Cada tiro de carabina era um inimigo morto. E a «Madsen» abria, a cada rajada, enormes clareiras na turba dos atacantes.

Já então a luta se generalizara aos diversos bairros do irregular perímetro da cidade. Mas combatia-se com particular ferocidade junto do Posto de Transformação, ao pé da bomba da Purfina e à entrada da cidade, na estrada de Luanda.

Dentro dos planos estabelecidos, os insignificantes efectivos militares asseguravam a defesa do quartel e alguns pontos vitais, adrede preparados como último reduto de resistência final até à hora derradeira. As milícias e a secção policial, encarregadas da cintura defensiva da cidade, aguentaram naturalmente o primeiro e mais duro embate daquele tropel de feras sedentas de sangue.

E foram admiráveis. Tendo começado na defensiva, entrincheirados atrás de rimas de sacos e dos muros dos quintais, ràpidamente quebraram a sanha dos bandidos, dizimando-lhe as primeiras filas com a pontaria quase infalível de experimentados caçadores de palancas, veados e pacaças. E, à primeira hesitação do inimigo, lançaram-se ao ataque, num ímpeto irresistível, levando tudo de roldão, a tiro e à arma branca, a balas de pistola ou carabina, com mortíferos zagalotes das caçadeiras, a golpes de baioneta, manejando varapaus, espetando chuços, investindo com facas e ferros aguçados, rápidos, tumultuosos, enfurecidos, gritando as duras pragas portuguesas, rugindo como leões feridos, varrendo tudo como um turbilhão …

Apanhados por aquela reacção inesperada e formidável, os terroristas, a quem os feiticeiros tinham garantido que os brancos fugiriam aos primeiros golpes de catanas, tinham começado por hesitar, surpreendidos e perplexos. O seu grito de guerra - «Upa! Upa! … Mata! Mata!» - caiu da força inicial, alargando o ritmo, perdendo vozes, esmorecendo gradualmente até naufragar por completo no rumor surdo da debandada …

Duas horas mais tarde, já não se ouviram tiros em Carmona. Os atacantes da esquadra da polícia tinham sido igualmente destroçados. E um pequeno bando, que lograra infiltrar-se até às proximidades do quartel do Batalhão de Caçadores 3 (então ocupado por um único pelotão de caçadores indígenas) fugira em pânico indescritível, perante a reacção dos bravos soldados negros que os acometiam de baioneta calada.

Carmona repelia assim o seu primeiro e único ataque.

Único, porque a lição dada ao inimigo foi daquelas que não se esquecem. E também porque, logo no dia seguinte, a milícia decidiu passar à ofensiva.

– Acabaremos doidos, se continuarmos aqui encurralados à espera de que nos ataquem! – declarou um beirão sem medo aos perigos nem às palavras. – Já andamos todos com os nervos a estoirar. Ninguém pode aguentar esses cães, a ladrar todas as noites, à roda de nós! Eu, pelo menos, não aguento mais! E raios me partam se me não atiro sozinho contra essa cáfila!
- Não podemos abandonar a cidade – argumentou o comandante da exígua guarnição militar.
- Não entendo patavina de estratégia – confessou o civil – e Deus me livre de discutir com o meu major. Mas a verdade é esta: eu não tenho fígados para ficar aqui quietinho, até que esses bandidos se decidam a vir cortar-me o pescoço. E, com sua licença, meu major, também me lembro de ter lido, já não sei onde, que um dos melhores processos de defesa é o ataque … Pois vamos nós ao ataque! Ainda que seja apenas uma pequena batida, aqui nas redondezas a uma dessas sanzalas, só para lhes mostrar como é! …
- … Sim: só para lhes mostrar como é que se enxofra! … - completou um mestre de obras, abrindo um largo riso que lhe mostrou os dentes sujos de tabaco. – Um batidinha para abater as farroncas da canalha …
- É que temos de fazer! – exclamou um algarvio, seco e tisnado como um mouro.
- Vamos a isso! – reforçou um funcionário caboverdiano.- O nosso major tem de concordar! – acrescentou um lisboeta dos quatro costados, dono da melhor carabina da milícia de Carmona. – Nós nem sequer lhe pedimos soldados … Basta-nos uma metralhadora ligeira …
- Uma metralhadora ligeira?! – protestou logo o oficial. – Impossível! Sou responsável pela defesa da cidade. Não posso dispensar homens nem armas.
- Tá bem! – condescendeu o lisboeta. – Vamos sem metralhadora!
- Também não concordo com essa vossa ideia de passar à ofensiva – acrescentou o major. – E parto a cara a quem me disser que é por medo! Tirem-me de cima dos ombros a responsabilidade do comando e ofereço-me já para ir à frente na surtida. Mas, enquanto for responsável pela defesa disto, não me peçam para privar a cidade de qualquer dos seus defensores.

Reconhecendo embora a razão que assistia ao oficial, os civis não desistiram do seu intento. E tanto argumentaram e insistiram que lograram obter do major uma espécie de consentimento tácito.
- Bem! – acabou ele por condescender. – Façam lá essa estupidez! Mas eu não sei de nada. E se qualquer dos cabos do pelotão se incorporar nessa expedição de malucos, não me venham depois dizer que fui eu que autorizei. Não autorizo nada! Não sei de nada! E agora, deixem-me em paz, já estou farto de os ouvir. Desapareçam!
Foram. E voltaram sem novidade … apenas alguns cabecilhas presos.

Animados por este êxito inicial, voltaram mais vezes, atacando os terroristas cada vez mais longe da cidade. Agora, o major já concedia uma autorização expressa e, lá uma vez por outra, cedia mesmo alguns soldados com pistolas-metralhadoras. Mas mal eles partiam, arrependia-se logo batendo patadas furiosas na terra mole da parada do quartel, e berrando para o comandante das milícias:
- Sou um assassino!- Um assasino?!
- Sim senhor! Um assassino! – repetia, batendo raivosamente as sílabas. – Então, numa altura destas, deixo partir à aventura alguns dos melhores defensores de Carmona?! Se os terroristas nos atacarem, se cortarem o pescoço a umas centenas de habitantes da cidade, de quem é a culpa? Não é minha? Então, aí está porque me sinto um assassino. Mas ai daquele que me volte a falar nessas maluqueiras! …

Assim barafustava, com o seu agudo sentido das responsabilidades, o valente oficial.
Mas, lá no seu íntimo, o que mais lamentava era justamente que essas responsabilidades o impedissem de ir, ele próprio, à frente daqueles bravos, nas suas repetidas investidas, que iam alargando, cada vez mais, a golpes de incrível audácia, o círculo ululante das feras …

*

Num desses trágicos dias, desceu em Carmona, dum Dakota da D.T.A., um pequeno grupo de senhores recém-chegados da Metrópole. Todos excelentes pessoas, alvoroçados com os acontecimentos e desejoso de lhes captar a realidade. Mas cheios de ideias falsas.

Era no princípio, quando a Metrópole ainda se mantinha hesitante e confusa, iludida por alguns dos que a deviam informar da verdade, totalmente ignorante da tremenda conspiração que em Angola se iniciava contra a Nação Portuguesa. Alguns quase que desculpavam a horrenda selvajaria dos massacres, explicando-os como reacção aos pretendidos abusos dos colonos. E muitos limitavam-se a encolher os ombros, dizendo: « - Que temos nós com isso? Quem as armou, que as desarme! …»

Vindos deste incrível clima mental, gerado na pasmosa ignorância em que o povo da Metrópole se tem conservado a respeito do Ultramar Português, os visitantes viram-se repentinamente rodeados por aquela turba de homens armados de carabinas e caçadeiras, carregados de munições, ansiosos e barbudos, semelhantes aos guerreiros de Fidel de Castro, antes de terem descido as escarpas de Sierra Maestra para as cómodas cadeiras do poder, colocadas no perigoso resvaladouro da protecção soviética …

Um pouco aturdidos pela tremenda tensão daquele ambiente, examinados por tantos olhos ansiosos, no cerco alucinante daqueles homens frenéticos que os interrogavam do limiar das cavernas do desespero, os visitantes foram crivados de perguntas que rebentavam de todos os lados, directas, indignadas, brutais:
- Quando nos mandam soldados?
- Então, não há armas nem munições?
- Temos exército ou não temos exército?
- Depois de trinta anos a pagar para a tropa, agora que pela primeira vez precisamos dela, não temos tropa?
- Que se faz na Fábrica de Braço de Prata? Pastéis de nata?
-Esses ricaços que anunciaram, na Emissora Nacional, a sua breve partida para Angola, já partiram para a Suíça?
- A Metrópole abandona-nos, ou quê?

No meio de um tal frenesim, os visitantes defendiam-se como podiam, respondendo quando lhes davam tempo para responder e tentando acalmar os ânimos, quando as perguntas não passavam de explosões de raiva e de muita dor acumulada …

Mas, a certa altura, um deles não resistiu ao contágio enervante daqueles homens exasperados. E, enervado também ele, abandonou o tom conciliador e ripostou duramente:
- Os senhores protestam, reclamam, exigem, acusam! E, no entanto, os senhores é que são os responsáveis disto tudo …

Um silêncio terrível sucedeu a estas palavras imprudentes. E um círculo de olhos arregalados de puro espanto convergiu para quem assim falava …
- Sim: - continuou o homem, reagindo ao inexplicável temor que lha causava aquele silêncio estupefacto … - Os senhores querem agora a ajuda da Metrópole. Reclamam soldados. Exigem armas e munições. Mas esquecem-se de que o povo da metrópole não tem culpa nenhuma das complicações que os senhores arranjaram …
- Das complicações que nós arranj …?! – balbuciou um agricultor, tão surpreendido que nem teve força para concluir a pergunta.
- Evidentemente! – teimou o adventício, de cabeça perdida. – Se os senhores não tratassem tão mal os pretos, nada disto acontecia!

Os milicianos olharam uns para os outros, como a duvidar do que ouviam, e apertaram mais o círculo em volta dos recém-chegados. Repentinamente, os seus rostos endureceram. À surpresa, sucedia o furor. Depois, com palavras sibiladas, como se lhe custassem a articular, um deles explodiu:
- Só nos faltava ouvir mais esta!
- Temos de tirar isto a limpo! – berrou um transmontano.
- Vamos ao comandante! – opinou outro.
- Eu bem sei o que eles mereciam! – insinuou um terceiro.
- Toca a andar, meninos! – intimaram várias vozes.

Percorrida a pequena distância que os separava da residência do comandante, explicaram-lhe rudemente o acontecido:
- Estes parvalhões – começou um agricultor, rubro de cólera – disseram-nos nas ventas que éramos nós os culpados do terrorismo …
- Logo, são contra nós e a favor dos terroristas – deduziu um comerciante.
- E, portanto, é com os terroristas que devem sentir-se bem – continuou um guarda-livros.
- Isso mesmo! – apoiaram várias vozes.
- Calma! Recomendou o comandante, atentando no ar feroz dos que falavam. – Que se passou, afinal?
- Pouca coisa … - informou sarcasticamente um alentejano, robusto e grandalhão. – Estes senhores são visitantes da Metrópole, chegadinhos agora do Chiado. E trazem-nos de lá esta novidade:
«nós é que somos os culpados do terrorismo». Os terroristas, coitadinhos, são inocentes como meninos de peito. Nós é que os maltratamos. E eles, pobrezinhos, picados por nós, como novilhos mansos numa arena, tiveram de reagir e defender-se …
- Não foi bem isso o que eu disse! – protestou o alvejado.
- Schiu! … - sibilou o alentejano, arremetendo para ele, de mãos crispadas na cartucheira. – Agora falamos nós! E cuidadinho, que nós é que somos os terroristas! … De resto, - continuou noutro tom, dirigindo-se outra vez ao comandante – Isto resolve-se depressa. Estes sujeitos são pelos terroristas. Pois que vão para junto dos seus amigos. Levam-se por aí fora, até uns trinta quilómetros de distância, na estrada para o Quitexe, deixam-se lá … e pronto. Os seus amigos terroristas se encarregarão de os encontrar e «acarinhar», como bons aliados …
- Bem pensado! – disse uma voz.
- Aprovado por aclamação! – gritaram outras.
- Vamos a isso! – concluíram todos. -Nada de asneiras! – bradou o comandante. – Eu ainda não compreendi bem as razões de toda esta zaragata. E em minha opinião … Mas calou-se, interrompido pela esposa, que regressava do hospital, onde devotamente prestava assistência aos feridos, e tinha parado à porta, na surpresa daquela barulhenta assembleia:
- Que aconteceu, Virgem Santa?! …
- Há um sarilho com estes senhores … - respondeu vagamente o marido, apontando o grupo de metropolitanos.

Muito corajosa e dinâmica, a boa senhora considerou com novo interesse a estranha assembleia: em volta, os rudes e bravos milicianos de Carmona, de armas à bandoleira, com os olhos a arder na febre da contínua vigília, com a barba crescida nos rostos queimados pelo sol tropical; e, no meio deles, aqueles homens bem barbeados e bem vestidos, de máquinas fotográficas a tiracolo, com a pele bem tratada a cremes do saboeiro Williams, com os cabelos lustrosos de brilhantina … Ficou a olhá-los num espanto crescente, até que exclamou, entre indignada e compadecida:
- Santo Nome de Deus! Então os senhores, numa altura destas, atrevem-se a aparecer aqui neste preparo, de máquina fotográfica e de corpinho bem feito, à laia de turistas milionários?! Rapazes novos, sem doença nem mazela, não podiam ao menos trazer uma espingarda ao ombro?! Os senhores não têm vergonha?! …
- Ora toma, que já almoçaste! – comentou uma voz.
- Assim é que é falar! – acrescentaram vários milicianos.
- Bonito serviço! – pensou o comandante. – Agora até a minha mulher implica com os homens …
Mas, num último esforço para acalmar a exaltação daquela gente, explicou alto do que se tratava. E, aproveitando o silêncio respeitoso que se fizera, concluiu:
- A milícia pretende levá-los até 20 quilómetros de distância e deixá-los a meio caminho do Quitexe, para que aprendam à sua custa as altas virtudes terroristas …
- Assim mesmo! – confirmaram várias vozes.
- … E eu não iria longe disso, porque vocês têm carradas de razão! – continuou o comandante, dirigindo-se agora aos milicianos e usando a estratégia de condescender para apaziguar. – Mas há um contra … É que os terroristas faziam-nos todos em picado. Não sobrava ninguém para contar a história … Talvez até aparecesse, em Lisboa, quem opinasse que os assassinos tínhamos sido nós … Em qualquer hipótese, perdia-se a lição, não é verdade? E assim não vale a pena …
- Não se trata de valer a pena ou não valer a pena – interveio a senhora. – Trata-se de não fazer disparates! Ou ainda acham poucas as vítimas dos bandidos?! A única coisa acertada é mandar estes senhores embora, já que se não devem sentir bem entre gente que consideram culpada desta enorme desgraça … Que se vão embora! Não precisamos cá de máquinas fotográficas. E, muito menos, de quem nos ensine a lidar com pretos. Sempre os tratámos melhor do que são tratados os trabalhadores brancos por alguns ricaços da Metrópole. Precisamos de homens que saibam manejar uma espingarda – continuou, dirigindo-se agora aos visitantes. – Dos senhores e da incompreensão de quem aproveita esta hora para insultar a nossa desgraça, não precisamos! Vão embora!

Um clamor de aplauso coroou as palavras da intemerata senhora, que granjeara a admiração geral pela coragem com que se recusara a partir para Luanda e pela insuperável dedicação com que passava dias e noites, à cabeceira dos feridos que afluíam ao hospital da cidade.

Mas todos exigiram que a partida se fizesse sem demora:
- Depressa! Bradavam, intimativos. – Antes que os homens de Carmona percam a paciência.
- E fiquem sabendo que estão com uma sorte de pais de leitões! – acrescentou um minhoto, cofiando nervosamente os bigodes enormes e farfalhudos, já salpicados de muitos pêlos brancos …

Suficientemente inteligentes e sensatos para se aperceberem de que não tinham ambiente que possibilitasse qualquer tentativa de explicação, os visitantes submeteram-se silenciosamente à decisão daquela gente, que lhes parecia incontrolável.

Discretamente avisada pelo comandante das milícias, que enviara um emissário ao major, a tropa interveio com oportunidade e bom senso, chamando a si a tarefa de transportar e escoltar os homens até ao Negage, onde tomariam um avião da FAP para Luanda.

E assim terminou essa tempestade num copo de água, provocada pela atitude dum bem intencionado, que imprudentemente reproduziu, numa frase infeliz, uma injustíssima atoarda que então corria na Metrópole … e que há muito deixou de correr.

Porque bem depressa a Metrópole se apercebeu da real gravidade dos acontecimentos e das suas verdadeiras determinantes, acudindo num esforço total e generoso, com o antigo instinto da velha Mãe-Pátria, capaz de dar todo o seu sangue em defesa dos filhos.

Mas o incidente, resumidamente descrito, vale como pincelada expressiva do clima psicológico e do panorama humano das milícias de Carmona, durante a fase final do terrorismo no Norte de Angola. E não há qualquer inconveniente à sua inclusão nestes episódios, porque não passou dum momentâneo desacordo entre irmãos, diferentemente informados sobre os factos, mas igualmente interessados na vitória de Portugal.

*

«Actos de incrível heroísmo praticavam-se todos os dias e com a maior naturalidade» - escreveu um tenente-coronel inglês, referindo-se à reacção das populações angolanas, nos primeiros dias do terrorismo. Palavras que devem ter sido escritas em Carmona, tão bem elas se aplicam ao comportamento dos defensores da cidade mártir!

Mas, justamente porque o perigo mortal e a forte determinação com que se enfrentava foram, durante meses, o pão quotidiano dos homens de Carmona, torna-se desanimadoramente difícil de captar tanta grandeza em lances susceptíveis de expressão verbal. E principalmente para mim, que faço um esforço enorme para imaginar como teriam sido as palavras e os gestos dos homens da milícia, nas horas mais amargas e decisivas do Congo Português. Escrevo … escrevo … - e a verdadeira estatura desses gigantes escapa sempre à curta medida das minhas pobres palavras!

Em transe dum quase desânimo, pedi a um agricultor do Uije – bom amigo e parte muito importante na epopeia daqueles dias terríveis – a narração de qualquer episódio verdadeiro que pudesse servir de fundo real a uma singela ficção literária e fosse suficientemente expressivo da actuação das milícias.
- Não há – respondeu ele, sem hesitar. – Nos dois primeiros meses, a valentia era continuar lá … E, para isso, cada um dava a alma toda!
– Mas alguém se deve ter salientado, em algum lance mais significativo …
- Já lhe disse que o milagre era continuar lá! – teimou o meu informador. – Tudo o mais dependia das ocasiões. Uma ronda atacada defendia-se com o habitual ímpeto dos portugueses: a tiro, a cacete, à arma branca, a soco, a pontapé, à dentada … Os que não eram atacados esperavam o ataque – o que ainda custava mais … Todos foram valentes. Por exemplo, os capatazes das roças …

*

Havia, efectivamente, integrados nas milícias de Carmona, muitos empregados das roças, brancos e mestiços, que tinham logrado escapar à vaga sangrenta, acolhendo-se à cidade. Fizeram coisas espantosas …

Eh pá! E se fôssemos até à fazenda do Amadeu?! – dizia um miliciano mestiço para outro, branco, logo depois do ataque à cidade. Para quê?! – contestou o branco, rapazola alto, com uma carita miúda de fraquitetes a disfarçar uma coragem de paladino. – Deve ter morrido …
- Palpita-me que não … - opinou o mestiço. – E, para tirar teimas, não há como ir ver … Tu lembras-te do Amadeu?
- Então não me havia de lembrar?! Ainda não há quinze dias que almocei com ele em Zala. Bom tipo! … - concluiu, evocativamente.
- Sim, um bom branco! – reforço o mestiço. – E um caçador formidável! Tinha a mania das armas. Que eu saiba, havia em casa dele , pelo menos, duas carabinas e uma caçadeira … E eram quatro empregados na roça … Não acredito que se tenham deixado matar.
- Oxalá! – fez o branco.
- Por isso, temos de os socorrer – concluiu o mestiço.
- Não nos deixam ir …
- Para coisas destas, não se pede licença.
- E como íamos? De «jeep»?
- Não, que ideia! De «jeep», descobriam-nos logo … Conheço um caminho de pé posto, pela lombeira da serra do Uije, que nos leva lá direitinhos. E não são mais de uns vinte e cinco quilómetros. Vamos …
- Não podemos desaparecer assim, sem dizer água vai! – lembra o branco. – Saíam logo à nossa procura …
- Isso arranja-se já! – declarou o mestiço. E berrou para um grupo de milicianos. – Chega, aqui, João!

Acudindo prontamente ao chamamento, aproximou-se um caboverdiano, de rosto simpático emoldurado numa barbicha muito negra, a lembrar um árabe de boa raça.
- Que é?
- Juras guardar um segredo, até ao meio-dia de hoje?
- Qual é o segredo?
- Jura primeiro!
- Está jurado!
- Está jurado!
- Assim não serve. Tens de dizer: «juro!»
- Juro!
- Bem, o segredo é o seguinte: eu, mais este camarada, vamos hoje à roça do Amadeu.
- Onde fica isso?
- Não é da tua conta. Quem lá vai somos nós …
- É uma asneira das grandes! – interrompeu o caboverdiano. - O nosso comandante não vos deixa ir …
- Nem nós lhe vamos pedir licença …
- O quê?! Nesse caso, tenho eu de lho dizer. Vocês são doidos varridos!
- Que raio de homem és tu?! – invectivou duramente o mestiço. – As tuas juras são como as dos ciganos?! Tu juraste!
- É verdade – concordou o caboverdiano, sucumbido. – Mas não sabia do que se tratava …
- Sabes agora! – concluiu o branco, muito sério.
- E o que te pedimos é muito pouco – acrescentou – acrescentou o mestiço. – Ao meio-dia, em ponto, avisas o nosso comandante de que fomos tentar socorrer um amigo. Que lhe não pedimos autorização, porque não havia tempo. E que não vale a pena zangar-se porque, das duas, uma: ou estamos amanhã de volta com mais alguns parceiros para este jogo – e nesse caso, tem de nos dar os parabéns – ou fomos apanhados pelos bandidos da UPA e, então, rezem-nos pela alma …
- Entendido?
- Tá bem! – disse o caboverdiano, olhando compadecido para aqueles dois malucos. – Mas, já agora, levem também isto!
E atirou-lhes a pistola e uma caixa de cinquenta balas.
- Obrigado! – fez o branco, singelamente.
- Vamos! – disse tranquilamente o mestiço.

Foram …
E aqueles almas do diabo não regressaram, no dia seguinte, já ao cair da noite, com o Amadeu e mais três brancos, depois de palmilharem a corta-mato, para lá e para cá, duas dúzias de quilómetros de mata que era um autêntico vespeiro de terroristas?! …

São desta tempera, os homens que defenderam Carmona.