As morenas de Ambriz

Guinapo

1 – Razões que a razão desconhece

Já passaram 22 meses desde que pisámos pela primeira vez, o pavimento sujo de óleo e restos de peixe, do porto de Luanda. Encontramo-nos agora, no distrito de Uíge, mais precisamente no coração da pequena Maiombe, (floresta de Santa Cruz) a norte de Santa Cruz. Durante o dia protegemos dos “turras” a companhia de engenharia que abre a estrada militar. À noite dormimos em camas feitas de troncos cortados na mata, cobertos com os colchões, em tendas exíguas de lona verde.

A floresta é densa e húmida, semelhante à Maiombe em Cabinda, de arvoredo centenário e valioso, que os madeireiros portugueses escoam permanentemente com destino à Europa rica, com recurso a grandes camiões e a técnicas de extracção e transporte engenhosas e arriscadas.

O Norte de Angola, quente e húmido é completamente diferente do Leste, arenoso, plano e luminoso. Aqui, a orografia é acentuada. Alternam por vezes, zonas amplas de colinas suaves de argila vermelha em que se instalaram as fazendas de café, e os montes agrestes com vales profundos, escuros, cobertos por floresta muito densa e antiga. Nestas zonas, os odores putrefactos da vegetação apodrecida e dos restos de animais mortos que não foram devorados pelos pedradores, tornam o ambiente estranho, frio, aos humanos que, invadem a floresta impelidos por algo que os domina e subjuga - o desconhecido escuro, opressivo e bafiento, ainda que a temperatura ambiente seja elevada.

A estrada militar que estamos a abrir, segue o mais possível as linhas de festo, para evitar emboscadas mortais. Ainda estávamos no Leste, e já ouvíamos as rádios transmitir os relatos macabros da “batalha de Santa Cruz”, comandos e pára-quedistas, tinham sido massacrados em emboscadas montadas nos trilhos confinados das fazendas do café ou nos trilhos dos madeireiros.

Nós viéramos do Leste dar protecção a uma companhia de engenharia na construção da nova estrada militar. Foi um tempo singular. Meses e meses isolados, sem ver branco nem preta. A viver em tendas militares ou a dormir na frente de trabalho com os escorpiões negros como visitantes agressivos e muito dolorosos. Noites e noites de lerpa, cervejas e cantorias eróticas. Os risos das hienas, que vinham pelo calado da noite aos restos da cozinha, cortavam o silêncio pesado, dos soldados mal dormidos e das sentinelas mal acordados.

Foram tempos únicos que um dia se a memória me ajudar, vos vou relatar. Desde o ataque, fantasma na minha avaliação, que sofremos em Santa Cruz, e de que fui um dos protagonistas, à morte arrepiante e infeliz de um dos nossos - foram meses heróicos, meio loucos, que passamos no Norte, no Uíge.

Faltavam 4 meses para o fim da comissão, estávamos acampados na aldeia capitão, penso eu… e por razões que a razão desconhece, recebi uma guia de marcha para seguir para Ambriz e preparar as futuras instalações para a companhia, que seguiria para lá daí a 1 ou 2 meses.

Nunca me disseram porquê. Eu encontrei várias explicações na altura, mas nenhuma me satisfez totalmente até hoje. Talvez o alferes Morais um dia me possa explicar - porquê eu? Temos que ver… que era um prémio, ainda que o relato de um massacre recente de seis soldados, entre Ambriz e as salinas do Capulo, o pudesse embaciar de algum modo.

Sair do mato, das tendas, do macarrão com carne já esverdeada, dos escorpiões, das minas anti pessoais, das hienas, da lama e do pó, das nuvens de mosquitos, que a mim especialmente me massacravam sem dó nem piedade, do correio de 15 em 15 dias, dos sargentos mal-humorados e dos soldados cacimbados… do escuro da noite e do dia e do cheiro a morte da pequena Maiombe, a 500 km de Luanda…

… e ir para Ambriz, para a luz, para a praia dourada a perder de vista, para as mulatas gostosas, para os canhangulos gelados, para os montes de marisco fresco acabado de cozer, para as noites infinitas de póquer e costeletas de cabrito do mato, à caçadora – feitas pela mulher ou pela criada do Administrador - para as infindáveis caçadas nocturnas aos bambis, para os olhos verdes água mais lindos e puros que eu já vira, para o cheiro único, a rapariga virgem, cujos pequenos seios sob o vestido azul eram promessas de um éden imaginário, para os cabelos castanhos finos, macios que exalavam a lavanda, enfim para as morenas de Ambriz: - a morena menina, dos olhares fugazes das manhãs frescas e luminosas nas ruas ou na praia, e a morena meiga, misteriosa, de pele de seda húmida das noites quentes de Ambriz.

Noites que eu disputava com o Carlos, entre enciumado e despeitado, pois pensava não ser o seu preferido na minha inexperiência.

Não, aquilo não foi um prémio, aquilo foi a taluda. Só que até hoje, não sei se comprei o bilhete ou se pura e simplesmente o ganhei sem jogar, ou ainda, se o ganhei nos 20 meses de uma muito esforçada caminhada. Caminhada cheia de lutas interiores, exigência e desilusões, frustrações e incompreensões, “algumas ainda hoje se mantém” mas, digamos com alguns resultados práticos, no fundo, aquilo que eu sempre procurei, resultados - vidas de regresso à vida.

2 – Com os coronéis do meu lado

Cheguei a Ambriz acompanhado por meia dúzia de soldados da companhia, integrado e sob a protecção de uma coluna militar, após largos dias de viagem em meios e de modos diversos. Apresentei-me de imediato ao Coronel, comandante do batalhão que estava estacionado no Ambriz.

Bom… vais com o sargento e os teus homens, instalam-se, e amanhã começam a arrumar as instalações. Limpam, pintam as paredes, montam as camas, aprontam tudo para instalar a vossa companhia…

Instalamo-nos e começamos a trabalhar, eu organizava as equipas ia buscar os materiais, em duas ou três semanas estava tudo pronto… Os soldados, comiam, dormiam, jogavam às cartas e eu dava voltas por Ambriz, gozando as mordomias que o “pré” de furriel me permitiam.

Mas, cada dia era mais difícil de passar que o anterior. Habituado há muito a estar ocupado eu não resisti. Se estivesse quieto e calado passaria um mês de férias, mas eu sou assim mesmo. Vou falar com o Coronel, pensei. Pode ser que me arranje ocupação.

Meu coronel, já acabamos, está tudo pronto… Se tiver alguma coisa para eu fazer, diga…

Olhou para mim perplexo, interrogava-se. Como é possível este tipo vir pedir-me trabalho, podendo estar na praia…

Depois, levantando-se da secretária disse-me. Anda daí... Vamos ver uma coisa!

Entramos para um Jipe que o aguardava à porta do comando e partimos em direcção ao mar. A meio da avenida central, inverteu a marcha e estacionou em frente da messe de sargentos e oficiais. Eram duas vivendas geminadas, que tinham sido ligadas por dentro. Nas traseiras uns anexos, tipo garagens, tinham sido transformadas em depósito de géneros e nas cozinhas. Um muro baixo circundava o logradouro ligando as moradias aos anexos.

Vinte ou trinta mulheres indígenas na sua maioria ainda jovens, algumas com miúdos ao colo estavam sentadas ou apoiadas no muro, coisa que na altura me deixou muito admirado, pois ainda que já estivesse em Ambriz há umas semanas, nunca reparara nesta situação. Eu entrava pelo lado da avenida, comia e seguia para o quartel, nunca tinha vindo a este lado. Pela sua parte o Coronel conhecia a situação e julgo que a achava natural, pelo que nada dissemos um ao outro.

O Coronel parou, na varanda sobranceira ao logradouro e olhou-me a rir. Diz-me uma coisa. Alguma vez geriste uma messe?

Eu não esperava a pergunta. Sempre pensei que aquilo estava reservado aos Sargentos, Vagomestres e similares. Eu era atirador de artilharia. O mais perto que tinha estado desta situação, além da cozinha da minha casa, tinha sido no meu primeiro emprego, em que fui apontador de uma brigada de agronomia e era responsável pela logística, salários, papéis, lápis, borrachas, ferramentas etc. comprava e controlava consumos exagerados, mas isto não tinha nada a ver com uma messe.

Meu coronel, se me der apoio para algumas alterações, e o Jipe do sargento, aceito.

Eu já tinha percebido o “filme”, ou seja o problema do Coronel. Ele não queria “castigar” o Sargento e os cozinheiros, mas podia substitui-lo na gerência da messe introduzindo como que uma alteração pacífica na equipa. Dado que eu estava sem ocupação, tinha uma desculpa para fazer a “reestruturação”, o sargento continuaria com as cantinas e refeitórios do batalhão.

E quais são as alterações? Vê lá.

Nada de especial meu Coronel, só algumas regras de funcionamento. Mas vai ver que é para melhor!

Eu tinha percebido alguma desorganização e descontrole nos consumos. As mulheres eram “lavadeiras”… do sargento, dos cozinheiros, dos ajudantes etc. etc. Todos comiam dos 14$00 diários, de cada comensal.

Quem chegava comia. Nunca faltava comida, logo era sinal que sobrava….E pela qualidade da comida, e pelos preços que pudera ver nas mercearias, talhos etc. Pensava que era possível fazer melhor.

Avança. Começas dia 8, segunda-feira. Eu vou falar com o sargento para te passar as coisas na segunda de manhã.

Reparem numa coisa, além da taluda, saíra-me também a terminação: - um jipe Willys, descapotável… todo o dia ao meu dispor, com ou sem motorista… se isto não era sorte, digam-me o que era?

Como conclusão, eu tinha sorte com os coronéis, senão vejamos.

Quem leu “30 dias na picada” sabe o que vale um coronel do nosso lado, em determinadas alturas. Aliás esta minha boa “relação” começa no Luvuei. Eu nesses dias, estava doente com uma crise de paludismo, tremia de frio e suava com febres altas. Molhava os lençóis com tanto suor. A resoquina injectável era milagrosa e eu tinha 21 anos, pelo que passados três dias de febres e de cama já me doía tudo. Nunca gostei de estar muito tempo deitado. Durmo pouco, e acordo cansado da cama, pelo que ainda tinha febre e já andava pelo quartel sem saber como passar o tempo. Não podia beber uma nocal. Não podia jogar à bola e o meu grupo estava no mato sem mim. Foi a primeira vez que eu não fui para o mato com o meu grupo e como o lamentei nessa altura.

Mas vamos aos factos. Estava eu de cama e começou uma grande operação conjunta com dois grupos da Cart 2731, e um grupo ou dois dos “paras” com apoio dos helicópteros sul-africanos, que não correu bem. Houve feridos e mortos no triângulo do Catoi. Quem comandava a operação a partir do Luvuei era um coronel que tinha vindo especialmente para isso.

Eu, ainda com febre, passava pelas traseiras da cozinha e dei por mim a pensar que se canalizássemos as águas sujas das lavagens e dos restos da comida, podíamos evitar maus cheiros, moscas, mosquitos e doenças. Se bem pensei melhor o fiz. Arranjei apoio de pessoal desocupado, fiz uns alinhamentos, marquei umas caixas e de imediato começamos com o que havia à mão, blocos de cimento partidos, madeira, tubos velhos tudo servia. Quem achou muito bem foi o coronel das operações.

Muito bem, muito bem. Então está com paludismo não é?

Estou meu coronel, mas já estava farto da cama e estou a dar um jeito. É pena não ter material em condições…

Mas vai ter, vai ter…

Entretanto terminou a operação. Eu estava à entrada da messe, quando chegavam trazidos pelos helicópteros os pára-quedistas. Vinham impantes, limpos, frescos e bem-dispostos. Eu reconhecia a alta preparação e capacidade das tropas especiais portuguesas. Mas as condições também contam. Comiam bem, tinham o melhor armamento e eram levados e trazidos das operações por helicópteros protegidos por um heli-canhão.

Era bem mais fácil… comentava eu, do que o “arre macho”, como era conhecida a tropa normal, quando fui abruptamente interpelado pelo capitão pára-quedista: - você está aqui a fazer-se doente para não ir ao mato, e, a mandar palpites!

Tentei responder, mas o homem estava fulo e nem me deixou falar.Ainda levas uma “porrada” por me faltares ao respeito… ameaçou. O capitão Pimenta que observava a cena nem se mexeu. Eu não era um bem-amado. Mas, para minha sorte quem estava na messe e ouvira tudo era o Coronel de operações. Mais uma vez um Coronel veio em meu apoio.

Capitão! Esse homem esteve com paludismo e mesmo assim cumpriu a sua parte…

O capitão, comandante dos pára-quedistas era um jovem fogoso e arrogante, mas não era burro, e o assunto morreu assim. No dia seguinte o Coronel e os pára-quedistas seguiram para as suas bases e tudo voltou ao normal…

Daí a dias, chegou material conforme prometera o Coronel e fizeram-se os esgotos da cozinha, desta vez em excelentes condições.

3 – A messe dos oficiais

A messe servia as refeições aos oficiais sargentos e furriéis e aos seus familiares. A guerra obrigou à democratização de alguns hábitos da velha hierarquia militar. No “puto” não era assim, era sim oficiais de um lado sargentos do outro. Aqui, a presença das mulheres e filhos dos oficiais e de alguns sargentos ainda acentuavam mais esse ambiente “democrático”. A dotação diária era na ordem dos 14$00, para as três refeições.

Os géneros eram adquiridos aos civis, armazenistas e comerciantes com casa de comércio aberta em Ambriz. Na realidade havia três ou quatro estabelecimentos disponíveis. O mais importante era o J. Martins, uma grande empresa com barcos de pesca, fazendas com gado e que tinha de tudo: - carne, peixe, massas, açúcar etc. numa grande loja aberta para a praça principal de Ambriz.

Foi aí que eu fiquei a saber dos 5%. Pela manhã, assim que a porta abriu lá estava eu na segunda-feira. Entrei e apresentei-me ao responsável, dizendo-lhe que estava a substituir o sargento na gerência da messe. Ele olhou-me e passando a mão pelo queixo como que pesando o que me iria dizer, disse pouco à vontade: - e então os 5 %, como é? Eu fiquei calado sem perceber. Os 5 % ? Quais 5 % ? Perguntei em voz baixa. Ele olhou em volta mas não estava ninguém por perto e então mais à vontade repetiu: - os 5 % que nós dávamos ao sargento. Eu tinha percebido finalmente e então disse-lhe: - Á os 5 %, sim tudo bem, a partir de hoje acrescenta no peso. Se eu comprar 20 kg, você factura 20 kg mas pesa 21kg, está a ver! Estou, estou… milicianos é o que é – respondeu pouco à vontade, mas a rir.

A estória repetiu-se nos outros comerciantes e a partir desse dia não se falou mais nos 5 %. O cozinheiro por vezes dizia: - meu furriel estes gajos gostam de si, ou então não sei, mas vem sempre tudo muito bem aviado. Pois vem, pois vem…pensava eu sem mais comentários.

Quem não gostou da minha ida para a messe, foram as “lavadeiras” que estacionavam logo pela manhã junto ao muro da messe. Não que eu as tivesse hostilizado, pelo contrário. Só que a margem de manobra dos cozinheiros e ajudantes diminuiu bastante com o facto, dos bifes virem contados, das batatas serem pesadas, e do azeite ser medido: - quantas inscrições para o almoço? São 50, meu furriel. Então quero 50 bifes e nem mais um. E o mesmo princípio era aplicado em todas as compras. Quem não se inscrevia previamente comia ovos estrelados com batatas fritas. Na messe passou a comer-se bem, e aos domingos havia bolos e grandes mariscadas.

Estas alterações surtiram o efeito desejado junto dos utentes, que quase duplicaram, mas criaram-me alguns “inimigos” entre os civis com “restaurantes” abertos. O Sr. João, (dono da cervejaria da avenida), chegou a dizer-me: - ó furriel veja lá, “agente” também se tem de governar, homem!!. Você já não precisa, está cheio dele… respondia eu a rir, entre dois canhangulos gelados.

4 – Os sopros do diabo

Conforme eu pensara a gerência da messe abriu-me portas e gerou oportunidades, pois tinha muito tempo disponível e um jipe à minha disposição durante todo o dia. De manhã fazia as compras e organizava as coisas. À tarde ia para a praia. As mulheres e filhos dos militares e alguns casais civis frequentavam regularmente uma praia a sul de Ambriz.

Havia uma zona nesta praia que não mais esqueci – os sopros do diabo. As rochas sedimentares em bancadas altas, quase planas, apresentavam uma característica única e que ao longo da minha vida não voltei a ver. Era uma espécie de chaminés que comunicavam entre a superfície exposta da rocha visíveis na, maré baixa, e a parte submersa da bancada. Destas chaminés jorravam a determinada altura da maré jactos de ar comprimido pela pressão das águas em movimentos pendulares ou cachões de água, que faziam a nossa delícia nas tardes quentes em que o vento vindo do mar era quente e húmido.

Quem nos deliciava também, pelo menos a mim, era a mulher de um colono branco que ia todas as tardes com a filha e por vezes o marido, (que eu conhecia das tardes e noites de copos e mariscadas), para a praia. Era gente alegre e extrovertida do norte de Portugal. Ele ostentava uma careca brilhante do suor, uma barriga senhorial e farta pelagem no peito costas e braços e um rasgado e franco sorriso. Teria trinta e muitos anos de alegria, copos e de parvoíce, recriminada pelos olhares baixos da mulher e pelas risadas da filha, que ainda criança sem o saber já era mulher. Ela era a típica minhota, branquinha de leite, alta, cabelos castanhos soltos, de coxas abundantes e peitos redondos e cheios de vida e calor. O recato de gestos e costumes aperfeiçoado pelas mães e avós portuguesas, ao longo dos serões (antes da “democratização” imposta pela TV), e controlado nos sermões dominicais, era atraiçoado nos breves instantes que os seus olhos meigos se cruzavam com os meus. A alegre ingenuidade da filha quebrava rapidamente a magia das promessas, incumpríveis, desses instantes.

Alguns dias, mais melancólico ia sozinho com o colchão pneumático que tinha na cama, para a baía das tartarugas verdes. Não procurem o nome, possivelmente não existe. Ambriz situa-se numa espécie de promontório. A norte o rio desaguava num mar profundo, azul-escuro intenso, que forma uma baía remançosa com acesso limitado aos mais audazes. A sul estendia-se a perder de vista até ao Capulo, a praia. Eu adorava, deixar ir o colchão ao sabor e na cadência de ondas baixas e espaçadas e, apanhar sol ao longo das tardes de bom mar e tempo. Afastava-me ousadamente das falésias, eu nessa altura era talvez um dos melhores nadadores em Ambriz, (que o diga o Trindade a quem salvei dos braços frios da morte na foz do rio Loje). Na praia, incentivado pelas hormonas, nas tardes de maré cheia atrevia-me a ondas colossais, perante a admiração contida das mulheres e a inveja dos homens presentes.

Nessas tardes de melancolia e sonho, a minha companhia eram as tartarugas. Raras eram as tardes em que não me olhavam com os seus olhos frios, bem de perto sem medo, como se eu fosse parte integrante e permanente do seu habitat.

Eu, nesses dias na baía, sonhava acordado sonhos de amores só sonhados nos olhos das morenas de Ambriz. Nesses sonhos entrava normalmente a moreninha que já vos referi, com os olhos limpos os cabelos macios exalando lavanda e a cintura mais fina que já sonhara abraçar. A sua frágil e graciosa figura, deslizava pelas ruas num vestido de chita azul que escorria pelas suas formas finas e virgens, logo pela manhã na companhia da irmã mais nova.

Deitado de costas sobre o colchão olhava o céu sem ver e imaginava-me a despir muito lentamente o seu vestido e a contemplar o seu corpo de menina, sem me atrever a tocá-lo, com se fosse um ente virginal.

Quando, logo pela manhã nos cruzávamos perto da casa do seu pai, sorrisos breves, comprometidos, indiciavam o conhecimento travado nas noites de festa na casa do administrador. Elas acompanhavam sempre os pais e riam animadas pela presença de dois ou três militares mais jovens, entre os quais eu me incluía, nas noites de sábado.

Ao longo da semana, eu projectava e antecipava encontros românticos, que se desfaziam nas noites de sábado quando só, mais uma noite eu regressava ao meu quarto. Deitado na cama de ferro que herdara com o quarto mobilado de um furriel do pelotão de radar que terminara a comissão, pensava na minha falta de jeito e no pouco à vontade que eu tinha com as mulheres.

Ainda hoje padeço do mesmo mal. Sou um tímido, desvalorizo todas as minhas possíveis vantagens e sobrelevo todas as desvantagens.

Para mim as mulheres são seres especiais, superiores no seu poder ancestral de gostar ou não gostar, do sim e do não, da loucura do sim ou da frustração do não.

Costumo dizer que só há umas melhores que outras em, determinados instantes, mas todas tem um tempo glorioso fascinante, em que não deveriam ser tocadas, mas sim admiradas e louvadas. Os seus olhos brilham e riem, a sua pele é macia, sedosa, lisa e perfumada, os seus cabelos são lindos de morrer. Umas na puberdade são frágeis, lindas de frescura e formas sublimes. Outras jovens… já mulheres, meigas, belas, perfeitas oferendas da mãe natureza. Outras, mais amadurecidas ostentam nas formas e poses o feminino calor que as transcende e até procede.

Todas, mais ou menos perfeitas, tem um tempo sublime, por vezes escasso, mas sublime. A sua única, mas dramática fragilidade nunca assumida, quais borboletas atraídas pela luz que as matará, é a raridade de homens com olhos de ver e a abundância de homens dos de mãos de colher.

Nessas noites longas de solidão, a minha mente e o meu corpo, alternavam entre as minhas duas morenas de Ambriz. Mas, à medida que a minha falta de coragem, adiava o namoro que eu prometia todos os dias a mim próprio, aumentava a frequência das minhas visitas nocturnas à morena esguia, meiga e submissa, de olhos negros, coxas sedosas e húmidas que se abriam à minha quase inocência com algum sem prazer repetido pela necessidade, ou pelo simples gozo de mulher, irmã.

Como eu valorizava aqueles instantes de fogo, nas idas pela noite, escura, sem protecção ao muceque. O meu coração batia descontrolado, podia ouvir-se à distância pensava eu, quando batia com suavidade na porta de madeira velha e sem pintura, de uma casa pequena de taipa, sem janelas e sem luz.

Se ela não abria de imediato, era a frustração. O “filho da mãe” do Carlos chegou primeiro, pensava eu. Uma noite a minha desesperada insistência fez levantar o cabo, por quem eu pensava ela tinha uma escondida preferência. Chegou descalço à porta e a brancura da sua cara contra o negro da divisão sem luz, fez-me recuar dois passos. Olhei-o por instantes nos olhos, nenhum falou, virei-me e nunca mais voltei ao muceque.

5 – O Sr. João, casapiano em Ambriz.

O Sr. João, português típico instalado há décadas em Ambriz, tinha o cabelo branco, farto, liso penteado para trás. Era um homem afável, sem pressas. Não sei se tinha a mulher ainda viva, não posso precisar, pois quem cozinhava era um rapaz negro, alto e magro, que fazia as únicas ostras que eu gostei até hoje. O Sr. João era um homem alto e desempenado para a idade e era dono da melhor “cervejaria” de Ambriz.

A cervejaria era numa casa de rés de chão tipo moradia familiar, que tinha sido transformada em comércio. Nas traseiras o quintal tinha um forno de cozer o pão, aonde eram grelhadas as ostras. Era uma espécie de ritual. O Sr. João ajudava com as cervejas, mas era dono e cliente ao mesmo tempo. Seríamos no máximo três ou quatro habitués. A seguir ao almoço, quando não ia à praia, começávamos a jogar ao pocker e acabávamos com uma pilha de cascas de camarão, rodeada pelos copos dos canhagulos, já sem espaço para a jogatina.

Acabávamos a gracejar sobre as morenas de Ambriz, já meio bêbados eu e os outros clientes. O Sr. João mantinha-se exactamente na mesma, sempre bem-disposto, sereno, altivo mas comerciante e sem se esquecer de nos cobrar a cerveja, pois o marisco era de borla. Nessas noites eu não sonhava com as morenas de Ambriz.

Digam lá, foi, ou não foi a taluda, que me saiu no Uíje.

Nota importante: Este texto não pretende ser a tradução exacta de acontecimentos reais passados há quase 40 anos, mas sim, o que ficou na minha memória, desse período das nossas vidas - e que agora partilho com vocês…

Manuel Guinapo
Ex furriel miliciano - 4º GC da CART 2731
Angola, 1972

Última actualização em 2011-06-02
Franquelino Santos, Ex- Furriel Mil. da CART 2731

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