Madrinhas de guerra

Fotografia

Quis o acaso que o meu primeiro emprego estivesse relacionado com a guerra do ultramar. Em Junho de 1968, tinha eu pouco mais de 18 anos, arranjei trabalho em Lisboa, como escriturário na Agência Militar (actualmente Centro Financeiro do Exército), onde permaneci até ir para a tropa.

Aquela entidade, que pertencia ao Ministério do Exército, era responsável, entre outras tarefas, pelo processamento e pagamento de subvenções aos familiares dos militares que estavam a prestar serviço no ultramar. O seu quadro de pessoal, com cerca de 500 empregados, era constituído maioritariamente por civis, dos quais cerca de noventa por cento eram mulheres.

Durante os cerca de 2 anos em que ali trabalhei criei muitas amizades, nomeadamente com uma colega cujo nome não interessa, mas a quem poderei chamar Maria. Era daquelas pessoas com quem, sem motivo especial e sem sabermos porquê, se simpatizava à primeira vista.

Em Junho de 1970, chegou a minha vez de ir para a tropa. Seguiu-se a mobilização para Angola e nunca mais tive notícias da Maria, embora lhe tenha escrito muitas cartas e lido as suas respostas. Parece um paradoxo, mas não é.

Vou contar-vos a estória.

Na guerra do ultramar, quando estávamos isolados na mata, normalmente só recebíamos correspondência uma vez por semana. No dia marcado, quando se ouvia ao longe o barulho do motor do avião que trazia o correio, corríamos para a pista para montar a segurança à aeronave e todo o pessoal vivia momentos de grande expectativa e nervosismo. Só quem ali viveu esses tempos pode testemunhar o alvoroço e alegria desse momento.

Chegada a hora da distribuição do correio, todos aguardavam ansiosamente. Muitas vezes, o primeiro desalento acontecia quase de imediato quando o cabo escriturário surgia com uma pequena quantidade de aerogramas para distribuir. Quando a quantidade era grande os nossos espíritos alegravam-se e todos ficávamos na expectativa de nesse dia chegarem notícias.

No final da distribuição do correio, a alegria de uma minoria, que tinha sido contemplada, contrastava com a tristeza da maioria, que teria de continuar a acalentar esperanças durante mais uma semana. Na verdade, a maior parte dos elementos da CART 2731 era proveniente de famílias simples e humildes, pouco dotadas para as letras, pelo que a troca de correspondência com os seus familiares era muito reduzida.

Recordo-me, numa dessas vezes, do olhar triste e longínquo de um elemento da CART 2731 a quem eu vou chamar António (o nome é fictício, mas o visado, se ler esta estória, sabe que estou a falar dele).

- Então António, hoje não tiveste sorte? Não recebeste nenhum bate-estradas (aerograma)?
- Meu furriel é quase sempre assim, os meus familiares mal sabem escrever eu também pouco escrevo, quase nunca recebo correspondência;
- Porque é que não arranjas uma madrinha de guerra? Assim, já terias quem te escrevesse mais vezes;
- Meu furriel eu até gostava, mas não conheço ninguém, mal sei escrever e se mandar uma carta a alguém não me vai responder de certeza;
- Deixa lá António, vamos pensar nisso.

Pensei no assunto e a Maria, da Agência Militar, foi a primeira pessoa que me veio ao pensamento. Era uma pessoa educada, simpática, afável e muito compreensiva e, pelo que conhecia dela, aceitaria ser madrinha de guerra do António.

No dia seguinte abordei o António e disse-lhe:
- Ouve, a Maria vai ser a tua madrinha de guerra, escreve-lhe uma carta a convidá-la que ela não vai dizer que não;
- E quem é a Maria?
perguntou o António;
- É uma antiga colega com quem trabalhei em Lisboa, na Agência Militar, educada, simpática, afável e muito compreensiva;
- Eu gostava, mas não sei o que lhe hei-de dizer na carta;
- Deixa lá, não faz mal, se quiseres eu escrevo a carta;
- Claro que quero,
disse o António.

Nesse mesmo dia escrevi uma carta para a Maria, falando-lhe da minha (do António) condição de soldado, psicologicamente abatido, desterrado nos confins de Angola, longe dos familiares e amigos, lutando pela defesa da integridade do nosso Portugal, arriscando a minha vida nessa missão. A puxar para o sentimento, terminei a carta recordando como considerava importante um pouco de conforto moral de uma madrinha de guerra para levar alguma felicidade aos meus difíceis e atribulados dias na mata e rematei com o convite, Maria quer ser minha madrinha de guerra? Eu sei que vai aceitar. Fico a aguardar ansiosamente a sua resposta.

Chamei o António li-lhe a carta que tinha escrito e perguntei se concordava ou queria alterar alguma coisa. Está óptima meu furriel, pode enviar. É lá seguiu o aerograma tendo como destinatário a Maria e como morada a Agência Militar, em Lisboa, e como remetente o António, da CART 2731.

A resposta não se fez esperar e passadas duas semanas, depois da distribuição do correio, o António veio ter comigo, com um sorriso de felicidade de orelha a orelha, com um aerograma na mão ainda fechado, dizendo meu furriel, meu furriel, a Maria respondeu-me, pode ler a resposta?

E lá vinha a ansiada resposta da Maria. Sim, não me importo de ser sua madrinha de guerra, mas gostaria que me dissesse como soube o meu nome, quem lhe disse onde trabalhava, quem sugeriu que me escrevesse, enfim aquelas perguntas normais para satisfazer a sua curiosidade.

- Estás a ver António, eu não te disse que a Maria não se importava de ser tua madrinha de guerra?
Agora é só continuares a escrever-lhe;

- Mas eu mal sei escrever, o furriel não se importa de escrever por mim?

- Está bem, dizes-me o que queres que eu ponha na carta e eu escrevo;

- É melhor o meu furriel arranjar a conversa, tem mais jeito para isso;

- Ok. Está bem.

Na segunda carta à Maria lá lhe disse que tinha sido uma pessoa amiga de nome Santos que a conhecia, mas que ela não devia conhecer (nós na tropa éramos conhecidos pelo apelido e o apelido Santos não dizia nada à Maria), que tinha sugerido o seu nome para minha (do António) madrinha de guerra. Penso que não terá ficado muito convencida com a explicação, mas a troca de correspondência continuava, cada vez com mais assiduidade.

Todas as semanas, depois da distribuição do correio, lá vinha o António com um ou dois aerogramas na mão, ar sorridente, muito feliz, e dizia-me:

- Meu furriel vamos ler e responder à Maria?

- Vamos a isso, dizia eu.

Foi assim que continuei a escrever várias cartas e a ler as respostas da Maria, durante vários meses, até ao fim da comissão do António.

Recordo ainda que, passadas algumas semanas, o António e a Maria concordaram em trocar fotografias para se conhecerem. O António tinha um pequeno complexo, considerava-se um homem de baixa estatura (a sua altura rondaria 1,65 m). Assim, para aparentar um jovem mais alto, comprou uns sapatos com um tacão com cerca de 10 cm de altura, que se usavam na época. As calças à boca do sino escondiam o tacão do sapato e, de uma forma simples, a altura do jovem passava de 1,65m para 1,75m. E assim, foram tiradas as fotos do António no fotógrafo do Ambriz que, alguns dias depois, haviam de chegar às mãos da Maria.

Aquela troca de correspondência, que teve como objectivo dar apenas um pouco de apoio moral ao António, começou a transformar-se muito rapidamente numa grande amizade e, penso até, numa forte paixão entre duas pessoas que não se conheciam. Nos últimos aerogramas já faziam planos para depois do fim da comissão em Angola.

A comissão da CART 2731 acabou em Junho de 1972. O António regressou à vida civil e eu continuei em Angola até ao final de Maio de 1973 para cumprir o resto da minha comissão de serviço.

Desconheço a parte final da história. Nunca mais tive notícias da Maria e do António tanto quanto julgo saber reside actualmente na zona de Algueirão – Mem Martins.

O António nunca foi a nenhum dos nossos convívios anuais, talvez porque não tenha tido conhecimento da sua realização, mas gostaria de voltar a revê-lo num desses eventos.

Franquelino Santos
Ex furriel miliciano - CART 2731
Angola, 1971

Última actualização em 2011-07-07
Actualizado por Franquelino Santos, Ex- Furriel Mil. da CART 2731