Trinta dias na Picada

Guinapo

1 – O Luvuei

A companhia dos Madeirenses estava agora no Luvuei. Tínhamos um destacamento no Lutembo – 60 km para sul. A deslocação do Lucusse para o Luvuei, tinha ocorrido 4 ou 5 meses depois de chegarmos a Luanda, a 7 de Junho de 1970.

Como outros aldeamentos no leste, e em toda a Angola, o Luvuei agregou as populações “refugiadas” vindas dos quimbos localizados na área envolvente num processo de concentração de populações só possível em situações de guerra. Estas construíram as suas cubatas perto dos quartéis, junto à picada e em arruamentos paralelos, reconstruindo as suas vidas sob a “protecção” dos militares portugueses.

Fiadas periféricas circulares ou quadrangulares de troncos cravados verticalmente no chão e ramos finos cortados verdes que eram entrelaçados horizontalmente e atados por cordas de casca de árvore entre si constituíam o esqueleto, a estrutura das cubatas. O espaço vazio entre os ramos era preenchido por barro vermelho cortado com palha de capim. A cobertura era em palha de capim assente sobre um ripado de ramos finos assentes sobre paus finos que se cruzavam no centro da cobertura.

Estas habitações baixas e muito fechadas, construídas com recurso aos materiais tradicionais serviam perfeitamente o seu fim e proporcionavam o conforto e segurança necessárias a um clima estremado e a uma natureza hostil.

Á medida que os militares e a administração foram reocupando o território, quando os movimentos revolucionários independentistas iniciaram a revolta contra o colonialismo, atacando e massacrando os colonos brancos com mais ou menos crueldade, dependendo dos movimentos e dos colonos, foram também construindo os seus aquartelamentos em madeira ou em blocos de cimento e cobertura de zinco apoiada numa estrutura simples de madeira.

Dos movimentos revolucionários, foi o FNLA no norte, que mais se distinguiu pela violência racista e por atrozes assassinatos de mulheres e crianças indefesas, ao passo que a UNITA e o próprio MPLA, foram mais selectivos nos seus ódios e rancores.

Na zona leste a UNITA e o MPLA, digladiaram-se ao longo de anos pelo domínio de locais estratégicos e (ou) pelo controlo das populações locais, mas mantinham de algum modo regras mínimas nas suas acções e combates tentando controlar as consequências para as populações indígenas e para os colonos portugueses, a quem atacavam com alguma selectividade pelo que pude constatar.

O quartel do Luvuei, ainda que improvisado, era funcionalmente bem estruturado – formava um rectângulo – enquadrado lateralmente pelas casernas e zonas de cozinha e refeitório, e pela secretaria e as oficinas nos dois topos: - poente e nascente. No lado da secretaria era a porta de armas; no lado das oficinas a zona de estacionamento das viaturas e a torre de vigilância.

Era circundado a pouca distância das construções pela vedação de arame farpado e pelas trincheiras e abrigos.

O Luvuei era o centro geográfico e estratégico de uma vasta região entre o Luso e Gago Coutinho. Uma região plana e arenosa servida milagrosamente por uma rede hidrográfica importante – o rio Lunguebungo, afluente de 1ª ordem do Zambeze - justificou pela sua dimensão e pela penetração na Zâmbia, santuário dos “terroristas”, o estacionamento de um destacamento de fuzileiros.

Esta centralidade e importância estratégica justificou também a construção de uma pista de aviação, que se desenvolvia na parte nascente do aquartelamento e permitia o lançamento de grandes operações, quer heli transportadas quer de pára-quedistas.

No destacamento do Lutembo, um grupo de combate, mantinha o controlo e protecção do aldeamento e da zona envolvente até à fronteira com a Zâmbia.

Desde a nossa chegada a Angola, tanto no Lucusse como no Luvuei, assegurávamos também em exclusivo, a protecção à coluna Luso/Gago Coutinho (MVL) – 408 km de picada de areia e minas anti carro - que abastecia de víveres, materiais de construção e géneros diversos os civis e os militares residentes ou estacionados no Lucusse, Luvei, Lutembo e Gago Coutinho.

Os quatro grupos de combate da 2731 alternavam entre operações, coluna e destacamento praticamente sem descanso. Ainda hoje me interrogo, como era possível? O facto de sermos uma companhia independente, sem a protecção de um batalhão, penalizava-nos em demasia. Com algumas excepções dos privilegiados, passamos 26 meses de mato em zona de guerra a 100%.

Para nós graduados a vida era bem mais fácil do que para os nossos soldados. Após as operações ou serviços, tínhamos acesso, que o dinheiro sempre permite às raras “mordomias” disponíveis no mato, (cervejas, cigarros, mulheres), e aquelas que o próprio sistema nos concedia pela natureza intrínseca das funções.

 

2 – No Leste profundo

Estávamos a 1000 km da costa, o clima afirmava-o todos os dias e todos os anos quando, naquele dia preciso, se iniciava sem atraso a época das chuvas – não posso já precisar esse dia – como se determinado por um ente superior, naquele dia – julgo que de Outubro – ali estavam em pleno trovoadas aterradoras, faiscando sobre árvores centenárias que se desfaziam, estilhaçavam em clarões ofuscantes à nossa vista, seguidas de chuvadas abundantes e persistentes.

O cacimbo aqui no Leste era mais ameno mas as chuvas, essas mostravam em pleno a força da natureza. As amplitudes térmicas entre as noites e os dias, são devastadoras para homens vindos das zonas temperadas como nós – transpirávamos abundantemente às três da tarde e batíamos os dentes de frio às três da manhã.

Colado na parede branca da caserna dos furriéis, sobre a cabeceira da cama de ferro do Camoesas, (que foi e é até hoje, o único homem que eu vi, assassinar pela calada da noite, a sangue frio e golpes certeiros de punhal “indígena” muito afiado e uma lanterna eléctrica, os percevejos que se atreviam entrar na sua cama para o atacar), um calendário anual, (daqueles de secretária sem imagens eróticas, imagine-se), mostrava pelos dias cortados metodicamente, que o Maio já ia a meio, as chuvas tinham terminado.

Eu nunca tive calendário na parede nem na cabeça. Primeiro, porque não queria saber, valorizava o melhor que acontecia e esquecia, ou tentava esquecer, o pior. Segundo, porque me bastava olhar em volta para as paredes mal rebocadas e escolher a versão. Uns assinalavam os dias já passados desde a nossa chegada a Luanda – outros… os dias que faltavam para o fim da comissão.

Conviviam aqui dois estados de espírito diferentes mas, irmanados na mesma angústia. De um lado, aqueles para quem o tempo decorrido, tinha custado tanto a passar que sabiam de cor o numero de dias já passados – então cortavam esses dias como uma vitória diária contra os mal fadados dois anos de comissão. Os outros sentiam que ainda faltava tanto tempo que sabiam de cor o número de dias que ainda teriam de suportar, fazendo de cada dia a menos, a sua glória. – Já só faltam 380 dias!

No entanto, na sua grande maioria, os duzentos homens da 2731 cumpriam as rotinas diárias, mais ou menos contrariados, mais ou menos angustiados, tentando passar os dias alheios à ditadura implacável do tempo.

Enquanto eu, depois de um jantar igual a tantos outros – esparguete guisada com carne de vaca – introspectivo tentava alinhar umas frases num aerograma, o capitão Pimenta disse ao cabo de serviço na messe: - ouve lá, vai chamar o furriel Guinapo…

Eu comandava nessa altura, em substituição do alferes Morais, o IV grupo de combate – era o furriel mais velho, tinha a ver com a classificação no curso de sargentos em Vendas Novas.

Na messe de oficiais, uma pequena divisão com um balcão de madeira que servia de bar e de messe em simultâneo, o capitão Pimenta estava debruçado sobre uma mesa, e olhava atentamente um mapa. Teria 35, 40 anos. Era de estatura mediana, bem constituído ainda que aparentando alguma flacidez, tez branca, cabelo escuro e bem-parecido.

Tinha sido alferes na incorporação obrigatória, pelo que em situação de guerra, e na falta de oficiais do quadro, fora chamado para comandar a companhia, como capitão miliciano. Era uma situação lamentável mas muito vulgarizada, o exército não estava dimensionado para suportar três frentes de combate em simultâneo, dai o recurso aos milicianos.

Falava-se que deixara dois filhos e a mulher em Gaia. Que teria um excelente emprego – na petroquímica da Sacor. Francamente, isto era o que se falava, como justificação para alguns excessos mais ou menos irreflectidos e temerários. O capitão era um homem sem grandes convicções. Julgo que era influenciado pelos sargentos – homens amadurecidos pela guerra continuada, por comissão atrás de comissão, sabidos, profissionais.

Havia de facto algo que, para além das saudades da família tinha grande ascendente sobre o capitão e era responsável por grande parte das suas acções mais polémicas. Mas hoje, passados 40 anos sobre estes factos, e alguns sobre a sua morte prematura, não seria muito correcto relembrar-vos isso.

- Guinapo vais com o teu grupo, dar protecção a uma máquina da JAEA – perto de Gago Coutinho.

Eu tinha 22 anos, era um miúdo, mas já trabalhava desde os 16 anos para o Estado e isso tinha desenvolvido em mim uma assumpção de responsabilidade pouco vulgar para a minha idade. Para mim comandar o grupo de combate, responsabilizava-me e envaidecia-me – mas era furriel miliciano – os alferes eram “os senhores oficiais” – protegidos, superiores…todos aceitávamos esse estatuto. Com os furriéis era diferente. Se corria bem era o grupo – se corria mal – o gajo pensa que sabe ou é alguma coisa, mas não sabe nada…os próprios soldados instintivamente reagiam de modo diferente perante um furriel a comandar ou um alferes.

Também por isto, havia na acção militar, duas posições distintas por parte dos furriéis. A maioria optava por se desvalorizar ou mesmo subalternizar, relacionando-se amigavelmente, tentando assim “comprar” a amizade e a condescendência dos soldados. Outros seguiam um caminho mais difícil, o caminho da exigência justa e equitativa.

As guerras são frias e brutais, não se compadecem com amizade e condescendência. As cadeias de comando profissionais, baseadas na exigência e no exemplo, são fundamentais e garantem a coesão e a frieza da decisão, necessárias à segurança do grupo, e essa era a minha única preocupação: - a coesão e a segurança do grupo.

Os furriéis foram uma invenção do estado novo. Eram sargentos baratos – a quem não era necessário fazer contrato, logo com poucos custos e responsabilidades para o Estado – serviam bem para usar e deitar fora e na minha opinião que bem serviram os furriéis. Os especialistas garantiam a logística base do sistema, sem fama nem vaidade – saúde, comunicações, mecânica, alimentação – só estavam excluídos da administração. Os atiradores eram a voz e o braço do comando em acção, ocupavam a base e o topo em simultâneo – muitos foram exemplares, mas poucos foram distinguidos, porquê?

3 – Viver na picada

Dois dias depois, saímos cedo em quatro unimog s e uma berliet carregada com o indispensável, incluindo um atrelado com o tanque de água. Seguiam com o grupo de combate - um cozinheiro que era servente de pedreiro na madeira - não me recordo já da sua alcunha - aliás algo me diz que era muito sugestiva. O seu ajudante era o Frita Peixe. Um rapaz invulgarmente escuro, magrinho e muito alto que ajudava na cozinha a troco da comida - era avançado, com lugar cativo na equipa de futebol da formação, aonde brilhavam os 40 anos do alferes médico.

Um enfermeiro, um rádio telegrafista e três condutores - completavam o pessoal de apoio ao grupo de combate. A berliet de transporte, e um unimog de protecção regressaram ao Luvuei depois de descarregarmos as tendas, os géneros alimentares básicos e meia dúzia de tachos em alumínio.

Os trabalhos na picada, já decorriam há algum tempo, e não posso precisar quem fomos substituir. Julgo que seriam do batalhão que estava sediado em Gago Coutinho.

A frente de trabalho, devia estar a uns vinte quilómetros de Gago Coutinho e progredia afastando-se para norte em direcção ao Lutembo. As zonas mais elevadas entre as ribeiras que regularmente cruzavam a picada eram as zonas mais densas da mata. A mata era composta por árvores de porte médio, enlaçadas pelas lianas e plantas rasteiras, que nalgumas zonas se tornava quase impenetrável, e só à catanada era possível criar acessos pedonais.

Os trabalhos de reparação da picada eram realizados por um bulldozer de 30 toneladas, com lâmina frontal. O manobrador da máquina era o João, um negro da cidade. Magro, de estatura mediana, muito jovial e vivido – devia ter trinta anos ou pouco mais. Vivia numa espécie de caravana em madeira, aonde cabia pouco mais que um pequeno catre e uma grade de cerveja. Atrelava-se a um veículo pesado, ou à própria máquina nas deslocações mais curtas. Tinha pequenas janelas laterais e uma porta que abria para as traseiras – lembro bem, que tinha três degraus de acesso – mais tarde se irá perceber o porquê da minha lembrança.

Instalámo-nos rapidamente. Olhei em volta avaliando a situação, enquanto o grupo que tínhamos substituído se afastava para sul muito ruidoso e envolto numa nuvem de pó amarelo.

- Montem as tendas – a cozinha fica no mesmo sítio - a secção do Oliveira monta a guarda… Preparem o jantar.

O destacamento avançava ao longo da picada com as obras, de modo a estar sempre perto da frente de trabalho – isto dava algum descanso e segurança ao pessoal, protegia-se a máquina e o destacamento com as mesmas sentinelas, o mesmo esforço. Quando a máquina deixava de estar à vista do acampamento, este avançava.

A máquina fazia a limpeza de um quadrado com 40 metros de lado, amontoando à volta numa espécie de barreira trapezoidal, a terra e a vegetação resultante dessa limpeza. Limpava também superficialmente uma zona envolvente acumulando os restos das plantas na base da mota. Deixávamos só uma abertura de saída para a picada, com 3 a 4 metros aonde, durante a noite estacionava a bulldozer.

A frágil “fortaleza” de areia era o nosso quartel. Estávamos seguros quanto ao tiro tenso das armas ligeiras. Ainda que provisória, esta estrutura defensiva permitia desenvolver a actividade normal e descontrair entre muros. Nos cantos montávamos os postos de vigia, que se mantinham dia e noite – pois estávamos a escassos 30 metros da orla da mata.

Os primeiros dias foram monótonos. Percebi que o João e a nocal animavam as horas de descanso - no início da noite - do Oliveira e do Trindade. Dormíamos os três na mesma tenda, pelo que era fácil perceber – quando se vinham deitar já não vinham sozinhos…

Eu, por princípio, quando estava a comandar não bebia. E ali a cerveja, sem frigorífico estava choca. Percebi sorrisos, comentários e olhares cúmplices, algo trocistas do João e dos seus visitantes nocturnos... Não bebe! Não deve ir às meninas! Ouvi, uma vez quando passava perto da caravana.

Uma vez por semana, íamos a Gago Coutinho prestar contas ao Coronel – comandante do batalhão - e buscar o correio, géneros, munições etc. Por vezes algum soldado ia ao consultório do capitão dentista - era um luxo que nunca tivéramos na 2731. O batalhão, agregava serviços diversos, de apoio às companhias – falava-se a meia voz, do destacamento da PIDE que integrava também os grupos de flechas… Quem comandava a PIDE e os Flechas era uma mulher de meia-idade, espanhola… terrível, segundo se dizia.

O Coronel era um homem de cinquenta anos, seco de carnes e de falas; sóbrio mas afável, algo paternal no trato quando em privado me recebia semanalmente no seu gabinete. Gago Coutinho, além dos pavilhões em madeira, que serviam de casernas do batalhão, localizados num planalto fronteiro à povoação, era constituído por duas ou três ruas pouco estruturadas, marcadas pelos comércios dos brancos e pela casa do Chefe de Posto - eram atravessadas por uma ribeira que corria lentamente para sul…

A norte da povoação, estendiam-se por centenas de metros ao longo da ribeira, as lavras que abasteciam de mandioca as populações autóctones. Duas ou três vezes por ano um grupo de homens seleccionados pelo chefe de posto, e enquadrados pelos militares faziam pescarias colectivas, que abasteciam de peixe – posteriormente fumado – as populações dos quimbos agregados.

Entre a frente de trabalho e Gago Coutinho a estrada era atravessada por pequenas ribeiras afluentes de 1ª ou 2ª ordem do rio Lunguebungo, cujas margens baixas e alagadiças, sem arvoredo, estavam cobertas de erva tenra muito procurada pelos animais logo pelo alvorecer… Nas viagens regulares a Gago Coutinho, avistávamos normalmente alguma caça. Javalis a fossar nas margens das ribeiras, galinhas de mato a picar no chão empoeirado e umas pacaças ou palancas a pastar mais ao longe…

Eu andava já há tempos com dores de dentes – entre os meus quinze e trinta anos, tive regularmente nevralgias muito dolorosas. No intervalo entre os MVL s, fui ao dentista no Luso. Infelizmente arrancou-me um ou dois dentes, o que não resolveu, pois as dores não passavam. Um dos queixais atormentava-me há dias, mas eu detestava e temia os dentistas, principalmente a parte da anestesia. O oratol e o bagaço também não resolviam.

Um dia, informalmente comentei os dois factos com o Coronel – venha um dia de manhã cedo, eu falo com o Capitão, e se encontrarem caça, veja lá o pessoal gosta de bifes… e fez um sorriso aberto que nunca lhe tinha visto.

Era sexta-feira, a noite estava calma. Eu pensei em deitar-me cedo. Pedi uns comprimidos ao enfermeiro e ele disse-me. O meu furriel já devia ter ido ao médico – tem um abcesso muito feio nesse queixal.

Antes de me deitar, tomei dois comprimidos e fui falar com os vigias. Era a minha secção que estava de serviço. Do atrelado soavam risos do João – estavam a comemorar.

 

4 – O superior do Benedito

O Benedito estava de vigia no posto mais afastado da minha tenda. Era reservado, algo tímido, magro e muito moreno. Sorria por tudo e por nada, mas de modo comedido.

- Então está tudo bem? Não se esqueçam do que vos disse…Não quero tiros… Só se virem mesmo alguém. Ou se houver tiros da mata.

Tinha havido queimadas. Todos sabiam que a seguir às queimadas, os animais apareciam na picada sem norte… mas não era motivo para tiros. Por vezes, poucos dias após as queimadas, ao longe avistava-se o luzir de brasas dos madeiros… consumindo-se e faiscando ao sopro leve da chana…

- Meu furriel. – o que é Benedito? - eu não tenho a certeza - mas pareceu-me ver qualquer coisa… há uns dez minutos.

- O que viste, então… diz lá?

- Pareceu-me alguém a fumar! Ali! E apontou em direcção a Nordeste, aonde a mata era menos densa.

- Ò Benedito… achas que se punham a fumar à noite?

Toma atenção, não quero tiros! Tu sabes que pode haver chatice – estamos aqui muito apertados, eu não quero tiros. Tá bem!

Dei a volta aos três postos restantes. Repeti a conversa, perguntei se tinham visto alguma coisa.

Nada meu furriel.

- Não quero tiros – Vejam lá

Estes diálogos eram comuns, davam confiança e estabeleciam regras mínimas, mas não evitavam de todo o desconforto e o medo da noite. Deitei-me com algum alívio. Os dois comprimidos já faziam efeito. Adormeci pelas onze horas.

Assustado com os tiros, pus-me de pé de um salto… peguei na G3, em truçes descalço corri em direcção à barreira de areia. Das tendas, quase nus, saiam aos trambolhões e espavoridos, os soldados. Deitados de bruços os vigias disparavam em direcção à mata…

- Ninguém atira, tudo quieto… Aonde começou?

- Começou no canto do Benedito – disse alguém

Corri para lá. Já todos estavam nos seus postos. Deitados na areia, de armas em riste, olhavam com intensidade a mata. Atirei-me para o chão ao lado do Benedito. Segurei-lhe o braço que tremia agarrado à G3.

- Então? O que é que viste? Tem calma.

- Vi alguém a andar e a fumar!

- Ò Benedito, eu avisei-te - Não quero mais brincadeiras - Tudo para a cama.

- Ò Trindade ficas duas horas a pé – vê se controlas isto – depois acordas-me.

Eu continuava deitado na mota ao lado do Benedito. Levantei-me devagar, saindo para trás e para baixo. O Benedito fez o mesmo, rastejou para baixo e pôs-se de pé na posição de vigia, de arma encostada ao peito a olhar a mata – obcecado.

Virei-me para me ir deitar… Ainda não tinha dado dois passos e já o Benedito disparava para a mata. Não pensei, a adrenalina invadia-me despertando sentidos adormecidos e controlados… rodei o corpo, e o braço ganhou velocidade – a minha mão direita, virada de costas, embateu na cara do Benedito. Ele, cambaleou… olhou para mim de olhos fixos - lentamente mas com convicção apontou-me a G3. Olhei-o nos olhos fixamente, e impassível disse-lhe.

- Eu tinha-te avisado…

Passaram-se alguns segundos, o Benedito baixou a G3 e a cabeça descaiu com desalento. Saí de imediato dali, sentia-me nu e envergonhado comigo próprio. Os soldados olhavam-me embasbacados, incrédulos.

Quando o Trindade me chamou duas horas depois, eu continuava acordado. Há poucas coisas de que me arrependo na vida. Esta foi uma delas. Nunca me perdoei. Passadas umas horas, pela manhã, friamente pedi desculpa ao Benedito. O Benedito era um bom soldado. Nessa noite, o medo foi o seu único superior.

 

5 – O ajudante do dentista

No sábado, ainda bem cedo, o dente doía-me mais do que nunca. Resolvi ir ao dentista a Gago Coutinho. Com a minha secção reforçada, lá fomos em dois unimog s. Nesse dia não se trabalhava. O João fazia a lubrificação do bulldozer. Eram copos e copos a encher de massa consistente. O óleo, e as limpezas com petróleo completavam o ritual da lubrificação, que eu já conhecia, das grandes barragens, como topógrafo dos “Serviços Hidráulicos”. Ia levar o dia todo, era um dia bom para ir ao dentista.

Andamos dois quilómetros e no alto quando começávamos a descer, avistamos a zona baixa da ribeira – lá estavam as pacaças a pastar. Parámos e saltamos de imediato para o chão – os soldados montaram guarda – o outro unimog, vinha a uns trinta metros e seguira o mesmo procedimento.

- Dias vai ao outro unimog!

– Diz-lhe para desligar o motor. Vamos devagar e sem fazer barulho. Os soldados vão todos a pé…Vamos chegar o mais perto possível.

Assim fizemos. Com o vento pela frente, conseguimos aproximar-nos até a uns duzentos metros sem que dessem por nós. Eu era bom atirador. Caçava desde os dezasseis anos às perdizes no Alentejo. Havia na secção, mais dois ou três que atiravam bem.

- Vocês os dois. Aproximem-se o mais possível - Apontem bem à que está mais perto, e disparem tiro a tiro.

- Não é preciso ferir as outras. Nós ficamos aqui.

Andaram uns oitenta metros pela orla da mata. Pararam atrás de uma árvore caída. Apoiaram-se e dispararam quase em simultâneo, dois três tiros cada um. A pacaça caiu redonda – as outras debandaram pela picada em galope desenfreado e desapareceram na mata. Em grande alarido aproximámo-nos… Passados quinze minutos, conseguimos carregar e atar a pacaça no unimog. Ia com as pernas de fora a balouçar quando chegamos a Gago Coutinho.

Na porta de armas perfilavam-se meia dúzia de cães vadios. Era uma cena única. A porta estava aberta, do lado da cozinha vinham aromas de carne guisada mas os cães não entravam no recinto do quartel. O medo do cacimbo, um casapiano com duas comissões e meia era superior à sua fome. Mordia-lhe as orelhas se os apanhasse no quartel. Eram muitas as histórias acerca do cacimbo. Uma delas referia uma reacção heróica e singular a uma emboscada.

 Entregamos o corpo do animal ainda quente ao Vagomestre do Batalhão – pedi-lhe para dizer ao Coronel, que era oferta dos madeirenses.

Fui de imediato ao pequeno pavilhão verde do consultório, as dores continuavam. A porta estava fechada, ainda que já fossem dez horas. Lá dentro um rapaz negro, com vinte e poucos anos varria o consultório. Era um auxiliar do capitão. Chamei-o pela janela.

- O capitão foi ao Luso, deve voltar amanhã...

Saí dali pior que estragado. Porque não perguntara pelo rádio. Bebemos uma cerveja fresca, oferta do Vagomestre – e regressamos ao destacamento. As dores continuavam.

À noite tomei mais dois comprimidos e consegui dormir. Pela madrugada as dores apareceram de novo e lá fomos nós para Gago Coutinho. Enquanto os soldados se desforravam na cantina, eu sentei-me à porta do consultório à espera do capitão. Passou uma ou duas horas, já não sei. O capitão não aparecia. Quem apareceu já pelas onze horas, foi o rapaz que o ajudava nas limpezas.

- Então o capitão?

- Não veio, a BO do correio já chegou, mas ele não veio!

- Mas ontem disseste…que vinha.

- Não veio, senhor… estava lá à espera, ele não veio.

Olhei-o de alto a baixo e disposto a tudo, e perguntei.

- Ouve lá. Tu não sabes arrancar dentes?

Olhou para mim… de boca meio aberta. Os dentes muito brancos nunca viram escova, eu sabia. Já tinha assistido. Limpavam a boca com um bocado de ramo de uma árvore que conheciam, cortado em bisel – o resultado era aquele, pareciam branqueados como os das artistas de cinema.

- Não senhor… Eu só limpo e chego as coisas ao capitão!

- Mas tens visto como é – não tens?

- Não, eu não sei. Não sei mesmo e não tenho autorização do capitão.

- Eu sei. Mas ele não precisa saber. Tu resolves isto. Eu não digo nada.

Ele perdeu o medo e o respeito e disse.

- O senhor é maluco, não é?

- Olha. Lava as mãos e vamos a isto.

Sentei-me na cadeira e abri a boca disposto a tudo. O rapaz estava mudo e olhava para mim. Comecei a transpirar. Eu transpiro com facilidade. A adrenalina não me perdoa - eu não consigo controlar – ruborizo e transpiro mostrando as emoções que me invadem.

- Vamos a isto já disse. Olha que eu chateio-me. Eu assumo a responsabilidade, ouviste.

- Tá bem, eu vou tentar, mas depois não se queixe. Não sei dar a anestesia, por isso prepare-se.

Soube mais tarde que tinha alguma instrução – tinha sido criado numa instituição católica - padres ou freiras não sei. Fechei os olhos, senti que mexia nas gavetas.

Primeiro saiu uma parte do dente que se partiu esmagada pelo “alicate”. Eu suava a bom suar. O drama, e as dores foram depois para tirar a raiz. Eu já me tinha arrependido mil vezes… Ele quase chorava, aflito.

- Eu não queria furriel, eu não queria.

Por fim lá conseguiu. Eu sangrava. Tinha o lábio inferior pisado e ferido, não conseguia falar. Mandou-me lavar a boca com desinfectante e disse-me.

- Tome dois comprimidos destes, o capitão dá sempre dois.

- Dá-me mais.

Peguei na caixa e vi que era um anti inflamatório. Eu precisava de qualquer coisa para as dores ou mesmo anti biótico para a infecção. Mas o enfermeiro resolvia isso, pensei.

O enfermeiro quando me viu, não acreditava. Pediu-me para falar com o médico da nossa companhia, pelo rádio. O Dr. Jorge Humberto era de Cabo-Verde, um português famoso. O primeiro a ir jogar para o estrangeiro – no Inter de Milão julgo eu. Um homem bom e brincalhão, já devia ter quase quarenta anos. Quando jogava futebol connosco, parecia ter vinte, tal era a diferença de força e de classe.

- Esse “gajo” é doido. Dá-lhe duas ou três injecções, entre hoje e amanhã.

Depois, já não ouvi mais nada. Fui directo para a cama. Tinha a cara inchada, já me doía tudo…Só na terça-feira, consegui começar a comer.

 

6 – A espanhola da PIDE

Nessa manhã, o João olhava-me de forma estranha. Já não se ria, pelo menos durante uns dias. Depois tudo voltou à rotina. No fim-de-semana seguinte, matamos mais uma palanca, que entregamos ao Vagomestre em Gago Coutinho. Nós ficávamos com as galinhas de mato e os javalis que o Alfredo apanhava a laço – julgo que era Alfredo – tinha-se apresentado na Madeira para cumprir o serviço militar, vindo da África do Sul aonde estava emigrado desde miúdo. Eu admirava-o por isso e pelo seu porte sereno, responsável. Hoje, quando o recordo perante o egoísmo, a descrença e a imbecilidade reinante, ainda o admiro mais.

Tínhamos quase um mês de picada, o capitão não falava em substituir-nos. Na segunda-feira seguinte, ainda o sol não nascera e lá fomos nós para Gago Coutinho buscar o correio. Os soldados só pensavam nas palancas e nas cervejas que o Vagomestre oferecia como recompensa. Já tínhamos andado uns vinte quilómetros, saímos da zona de mata e entramos numa zona de chana aberta a perder de vista à nossa frente.

Sem percebermos como, de repente, ao nosso lado esquerdo a correr, meia dúzia de paçaças perseguidas por uma matilha de cães selvagens – deviam ser uns vinte. Eu detestava “babecos”. Já vira como paravam de correr nas suas caçadas, para comerem os seus feridos. Hoje, estão em extinção segundo dizem. Nesses anos, na década de setenta em Angola, havia centenas. Grandes matilhas perseguiam em caçadas infindáveis todo o tipo de presas. Trabalhavam em equipa, substituindo-se na perseguição. Usavam tácticas de caça muito elaboradas ao nível do colectivo. Eu admirava os seus instintos de sobrevivência colectiva, mas achava-os repelentes.

Instintivamente os soldados que se sentavam do lado esquerdo do banco do unimog, começaram a disparar. Ainda esbocei uma tentativa para que parassem. O entusiasmo, quase euforia era muita, a manada “entalada” entre a matilha e os unimog s, corria em debandada pela chana. Alguém com sorte acertou numa das palancas. Esta rodou sobre si própria e caiu aos trambolhões. Os “babecos” não hesitaram e num frenesim quase festivo, mordiam aonde podiam.

Parámos os unimogs. Os soldados disparavam sobre os cães, mas estes não desistiam. Caiu um, e outro arrastava-se ferido. Mas não desistiam. Aproximamo-nos mais, e eles afastaram-se até pararem a uns cem metros, olhando para nós, hesitantes, entre receosos e esfomeados.

Começamos a carregar a palanca e eu dei por mim a pensar. Estamos perto de Gago Coutinho. Espero não ter chatice. Ainda não tínhamos andado quinhentos metros, avistamos três viaturas em sentido contrário na picada. Eram os flechas. O seu aquartelamento era na povoação junto à casa do Chefe de Posto. Tinham ouvido os tiros, pensei. De facto já estávamos perto das lavras de mandioca. Aquela hora já andavam lá as mulheres. Parámos os unimog s e saltamos para o chão, antes das três viaturas chegarem perto de nós.

- Ninguém fala. Assumam posição de protecção às viaturas.

Os soldados afastaram-se um pouco mas viraram-se para mim. Eu fiquei parado, com a G3 na mão direita. As viaturas com os flechas pararam a uns trinta metros. Primeiro saíram os flechas de armas nas mãos. Depois… da cabine da viatura de trás saiu uma mulher de calças de algodão verde – à civil. Aparentemente não estava armada… a espanhola… pensei. Estou lixado. Ela olhou para mim e perguntou em voz pouco alterada, mas autoritária

- Quem é que manda aqui?

- Mando eu - respondi com convicção.

Nós no mato, em combate não usamos divisas nem galões.

- Está preso.

Fiquei varado. Os soldados aproximaram-se de mim. Notei que levantavam as armas. Os Flechas fizeram o mesmo. Deviam ser uns quinze. Alguns, eu conhecia-os, já tinham feito operações connosco.

- Por ordem de quem?

- Minha - da PIDE.

- Não a conheço e não lhe reconheço autoridade sobre mim e sobre os meus soldados.

- Primeiro vou falar com o Comandante de Batalhão - depois logo se vê.

- Está preso, já disse.

- E, eu já lhe respondi, vou apresentar-me ao Coronel.

- Vamos embora pessoal.

Comecei a recuar, sem lhe virar as costas. Os soldados de armas em punho faziam o mesmo. Percebi que a espanhola não iria mais longe. Nós éramos uns dez ou onze e estávamos juntos, nesta embrulhada, todos perceberam incluindo a espanhola que não nos entregávamos.

Andamos mil metros e percebi tudo. As lavras estavam desertas. Tinham fugido todos para Gago Coutinho. Estávamos demasiado perto. Fiz asneira da grossa. Pensaram que era um ataque, pois os tiros prolongaram-se por dois ou três minutos. Mas tinha tomado a decisão certa. O Coronel conhecia-me bem, pode ser que dê uma ajuda, tanto mais que tem a pacaça.

Enquanto nos aproximávamos do arame farpado do quartel, dei comigo a pensar numa noite no Luvuei, em que dois inspectores da PIDE foram interrogar um velhote de cabelos brancos de neve que tínhamos apanhado na mata com cigarros e café. Eu estava de serviço, já era madrugada. Pode ser que vos conte essa cena um dia… se tiver estômago para tal.

O Coronel recebeu-me de imediato. Já sabia de tudo e tinha pensado friamente no assunto. Assim que entrei disse-me em voz pausada e fria.

- Fizeste asneira. Mas eu falo com eles. Vai tratar dos teus assuntos e depois passas por aqui.

Fiz-lhe a continência, acenei que sim com a cabeça e sai cabisbaixo.

- Vamos embora, ninguém comenta o assunto. Mesmo ninguém.

Procedemos como era habitual, mas ninguém bebeu nesse dia. Entregamos a pacaça, fomos buscar o correio e regressamos à zona do comando. O Major de Operações - que era segundo comandante – passou por mim apressado em direcção ao comando. Todos ficavam nervosos quando se metia a PIDE. Eles eram úteis na guerra, mas não eram convidados para as festas, digamos assim…O cabo de serviço no comando, veio chamar-me ao unimog. No comando estavam só os dois - o Major de pé ao lado da secretária do comandante, olhava para mim meio divertido.

Entrei e fiquei na zona de entrada, parado em sentido.

- Entra lá… fica à vontade.

- Já está resolvido!

- Para a próxima já sabes, nada de tiros perto das povoações…

- Podes ir… Já agora… como vão os dentes?

Não lhe respondi, percebi que estava a gozar comigo e não queria resposta – Fiz-lhe continência e saí aliviado. Ouvi-os a falar e a rir, antes de me afastar em direcção aos unimog s.

- Tudo bem - desta já nos safamos. Vamos embora.

À noite no destacamento, a história conheceu versões diferentes, ainda que todas confluíssem num sentimento de orgulho, ainda que camuflado pela angústia que sempre envolvia a referência à PIDE: - fizemos-lhe frente, ninguém virou a cara… diziam a meia voz.

 

7 – Beber a despique

Todos sabiam que se tinham acabado as caçadas. No dia seguinte, o capitão informou-me que íamos ser rendidos três dias depois.

À tarde desse dia o João passou por mim, parou e disse muito divertido.

- Então? Vai-se embora e não bebe um copo comigo?

- Não me diga que tem medo de não aguentar cá com o velhote.

Olhei-o, mas não respondi de imediato, pensei… porque não? Ele bebia todos os dias e parecia uma tábua. Estava treinado. Eu bebia bem nessa altura, e estávamos no fim do destacamento. Vou falar com o Oliveira. Vou-lhe passar o comando por uma noite. Olhei para trás e disse-lhe.

- Nunca se sabe, vamos ver.

Falei com o Oliveira e com o Trindade. Esta noite é a minha folga – o Oliveira assume o comando. Seriam oito da noite quando subi os degraus do atrelado. O João sentado na cama sorria. Os soldados espreitavam incrédulos.

- Então como é?

- É simples, cada um tem uma grade – vamos bebendo.

Parecia surreal - ia embebedar-me a despique. Em miúdo fizera isso com uma garrafa de Pedro Domeque – o resultado tinha sido desastroso para mim e para o Quintiliano. Sentei-me aos pés da cama aonde estava mais fresco.

Bebemos uma cerveja – estava natural, mas sabia bem. O João procurou numa caixa de cartão que era a sua despensa, umas latas de conserva de dobradinha, era a sua preferida, muito picante. Íamos falando e bebendo. Alinhámos as cervejas vazias em duas linhas paralelas – era mais fácil para não nos atrasarmos.

Ele bebia e ria-se, eu tentava não me atrasar. Contou-me que era de Nova Lisboa. Tinha estado no contingente angolano como cabo. Concorrera à JAEA, com a ajuda de um engenheiro que dormia com a sua mãe desde que ele se lembrava… Já há dois ou três anos que andava nesta vida. Uns dias aqui, outros ali. Perguntei se era casado. Disse que sim. Tinha duas mulheres. Uma em Nova Lisboa outra no Luso, ambas com filhos.

A fila do João, já tinha mais duas cervejas. As grades estavam meias. Eu comia o que podia para ajudar. Os soldados espreitavam curiosos e faziam comentários. Com esforço tentei não me atrasar mais. Fiz-lhe todas as perguntas que me lembrava, para o manter ocupado, a falar. Mas ele bebia e ria, parecia que começara agora. Eu contei a minha fila, já tinha bebido dezasseis cervejas. Faltavam oito. Seriam onze da noite.

Comecei a ter dúvidas. Não me devia ter metido nisto. Ele incitava-me. Então? Não me diga que desiste. Levantei a cabeça – isso não admitia. Nunca desisti… sabe. Voltei a contar as cervejas vazias. Tinha dúvidas e voltei a contar apontando com o dedo. Ele disse. Já bebeu vinte, furriel. Aqui, e até hoje só quem bebeu vinte fui eu. Eu já não pensava, nem falava – só não queria, era desistir…

Dentro do atrelado estava calor. Cheirava a cerveja e a catinga. A roupa de trabalho do João amontoava-se a um canto. Aos poucos, enjoado e quase a vomitar, bebi mais uma cerveja. O João já acabara – tinha virado a grade vazia, orgulhoso – tinha ganho.

Eu, já assumira interiormente a derrota… Não queria era desistir. Levantei-me com dificuldade e vi tudo à roda. Lembro-me que lhe disse…Vou “mijar”, já volto. Agarrado às ripas da janela aberta, cheguei à porta. Estava aberta e o fresco da noite bateu-me no rosto – revitalizou-me. À frente da porta os soldados olhavam-me lá de baixo. Dei um passo para o primeiro degrau e caí estendido ao comprido, na areia amarela.

Não me lembro de mais nada… O enfermeiro deu-me uma injecção que já tinha preparado a meio da noite, a conselho do Oliveira penso eu…

Dois dias depois, regressamos ao Luvuei – tínhamos estado trinta dias na picada – nunca mais vi o João, mas tenho a certeza que esteja aonde estiver, continua a beber “nocais”… e a rir.

Nota importante: Este texto não pretende ser a tradução exacta de acontecimentos reais passados há quase 40 anos, mas sim a descrição dos excertos mais relevantes que retive na minha memória, desse período singular das nossas vidas - e que agora com amizade partilho com vocês…

Manuel Guinapo
Ex furriel miliciano - 4º GC da CART 2731
Angola, 1971

Última actualização em 2010-02-02
Franquelino Santos, Ex- Furriel Mil. da CART 2731