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SANTA CRUZ DE MACOCOLA

Santa Cruz! Nome bonito para o gosto dos portugueses! Marcaram com ele as terras que foram berço da Grei e a esteira das caravelas, a toda a redondeza do mundo. A baptizar águas termais da ilha da Madeira, ou lindas cidades do Brasil, ou a sede dum concelho açoriano, ou uma pequena aldeia das Beiras, ou uma praia dos arredores de Torres Vedras, ou um pequeno povoado de S. Tomé, ou a vila mais moça de Angola - Santa Cruz é um nome que assinala, quase sempre, a presença ou a passagem de um português. Mas como os portugueses passaram por muitas e desvairadas regiões do globo, ao nome tantas vezes repetido foi necessáriao acrescentar designações individualizantes, como quem ao nome do baptismo acrescenta o apelido de família. E assim foram surgindo, na geografia mundial, Santa Cruz das Flores, Santa Cruz da Graciosa, Santa Cruz do Sul, Santa Cruz dos Angolares, Santa Cruz das Palmeiras, Santa Cruz de Goiaz, Santa Cruz do Bispo, Santa Cruz do Douro, Santa Cruz de Monterey, etc., etc.

Cerca de 300 quilómetros a Nordeste da cidade de Carmona, entre a povoação de Macocola e o rio fronteiriço do Cuango, o Administrador Torcato Salvado, com o patrocínio do Major Hélio Felgas, então governador do Distrito do Congo, fundou, há meia dúzia de anos, a mais nova das vilas com este nome. Nos mapas, figura apenas como Santa Cruz. Mas para a distinguir de tantas terras homónimas, vai-se generalizando o costume de lhe chamar Santa Cruz de Macocola.

Cinco casas comerciais e o modesto edifício da administração:-uma vila! Na Europa, talvez isto concite o riso. Em Angola, não. Aqui, mais do que em qualquer outra parte, as coisas «são» pela vontade do homem. Nova Lisboa, por exemplo, já nasceu cidade. E não envergonha o seu fundador...

Para aquela amostra de vila convergiram, logo no começo do terrorismo, os brancos e mestiços das fazendas circunvizinhas. Quando se lhe juntaram também os de Cacocola, Santa Cruz congregou 83 almas, sendo 38 homens, 14 mulheres e 31 crianças. Pretos não havia: todos tinham fugido para as matas.

Possuíam algumas armas, umas centenas de balas e um jeep. Ao fim de poucos dias, o jeep avariou. Nem tentaram repará-lo por que não valia a pena; tinha-se acabado a gasolina...

Os bravos rapazes da FAP tomaram a seu cuidado abastecer a vila de víveres, lançando-lhos em pára-quedas. Mas, às vezes, iam cair longe demais e os terroristas apanhavam-nos e armavam grande galhofa com o caso...

Enquanto o jeep funcionou, estas galhofas saíram-lhe caras, porque havia sempre quatro ou cinco brancos que corriam para eles e os varriam a tiro. E quando Macocola foi atacada, ainda romperam até lá, em coluna pequena mas aguerrida, que deu uma ajuda decisiva.

Foi depois desse lance que os homens da antiga povoação se juntaram aos defensores de Santa Cruz. Tempos mais tarde, em 2 de Maio, pelas quatro da madrugada, os bandoleiros atacaram a vila, em vagas sucessivas. Enquadrados pelos oito guardas do posto policial, os civis defenderam-se como leões, e quando, ao raiar do sol, os bandoleiros voltaram costas, lançando-se em fuga desordenada, deixaram à entrada da vila quase duas centenas de cadáveres.

- Estes branco tem feitiço mais forte que o do Sr. Pierre! - exclamavam os cabecilhas aliciados pelos emissários de Leopoldville. E, com um medo supersticioso por aqueles homens indomáveis, abstiveram-se de novos ataques, preferindo apertar o cerco, na esperança de os reduzir pela fome.

Durante algum tempo, em certas manhãs de cacimbo mais denso e depois de longas exortações do feiticeiro, ainda houve um ou outro mais atrevido, ou mais alucinado pela liamba, que se aproximou das casas, a coberto da névoa protectora. Mas nenhum dos que chegaram a avistar as sentinelas da vila pôde voltar para contar a façanha. As sentinelas não se deixavam surpreender; e a sua pontaria era infalível...

Assim, e à custa de mais alguns mortos, os bandoleiros acabaram por desistir de qualquer espécie de ataque. E definitivamente se confiaram na estratégia dum cerco sem falhas e sem pressa nem piedade.

Completamente isolados, com a estrada cortada, sem campo de aviação, quase sem víveres e com poucas munições, aqueles brancos não lhes podiam escapar. Consideravam-nos uma presa segura. E tudo estava já combinado: como haviam de matar os homens e para quem seriam as mulheres mais bonitas...

De noite, organizavam batuques, à roda de enormes fogueiras, enchendo a treva húmida com a toada de intermináveis cantares.

De dia, divertiam-se a simular ataques à vila, berrando e saltando, no ritmo estimulante dos tambores, mas sem nunca se aproximarem a menos de 400 metros.

- Venham cá, meninos! - convidavam alguns defensores da vila, com o dedo no gatilho das armas. - Cheguem-se mais um bocadinho, para vos darmos as amêndoas da Páscoa!...

Mas os bandidos, com a apurada intuição da sua raça, tinham ràpidamente aprendido a não ultrapassar os limites da segurança. Compreendiam que os brancos, em penúria de munições, não lhes atirariam enquanto os não tivessem relativamente próximos. E, à cautela, era sempre a razoável distância que dançavam, escarneciam e insultavam, brandindo as catanas, fazendo gestos obscenos, cantando, urrando, guinchando:

- «O branco há-de morrer! há-de morrer! há-de morrer!»

- «O branco é como o tuge, é como o tuge, é como o tuge!...»

- Filhos da Parker-51 - exclamava, rilhando os dentes, um beirão que tinha vindo de Macocola e, por causa das senhoras presentes, não podia dizer palavras feias...

Assim se ia passando o tempo, naquela vilazinha isolada e longínqua, donde nem sequer tinha sido possível evacuar as mulheres e as crianças.

E tantos dias assim se passaram, que já lhes parecia ser aquela a sua vida de sempre e para sempre.

Havia uma coisa terrível: a água. A água ficava para além do círculo dos facínoras, já na orla da floresta traiçoeira. E era preciso ir buscá-la a pé, de armas aperrada, por um carreiro meio afogado em capim alto...

*

Santa Cruz era ainda uma vila menina e moça mas nascera perfeitinha. Não lhe faltava água encanada, não senhores. Simplesmente, logo nos primeiros dias do terrorismo, e como acontecera em todas as fazendas circunvizinhas, também ali os bandoleiros tinham arrancado as tubagens, para fabricar canhangulos. E agora, dos tubos por onde antes corria a água, jorrava a morte, emboscada na mancha verde de à-beira-rio.

O rio não distava mais de um quilómetro das primeiras casas da vila. Mas eram mil metros em que o perigo mortal se repetia mil vezes. Cada litro de água podia custar uma vida. Por isto a água era tão preciosa

Andava rigorosamente racionada. Durante aquelas intermináveis quinze semanas ninguém, alguma vez, pôde saciar a sede à sua vontade. De banho, nem se falava. Lavava-se a cara uma vez por semana. E, apesar disso, as mulheres de Santa Cruz, continuavam bonitas…

Ora, mesmo nesse regime de apertada poupança, a água não durava sempre. E aqueles homens sem medo tinham medo da sede, que era a única coisa que os conseguia aterrorizar. – Antes a carga de um canhangulo! – diziam. Quando a água acabava, iam buscar mais… De cada vez, partia uma vintena de homens; dez com armas aperradas e os restantes com vasilhas de toda a espécie: jarros, panelas, alguidares, baldes, banheiras de bebé.

Os que partiam galhofavam, para espairecer a angústia de pensar no gume das catanas: - Até já, Maria Saganha! Talvez apanhe umas perdizes para o jantar… - Dizia um minhoto palreiro. - Aproveita antes para lavar os pés! – sugeria um duriense, muito sensível aos maus cheiros. - Vou trazer-te um ramo de espinheira para penteares essas barbas de Ferrabraz! – replicava o primeiro. - Olhem para os trastes que o António leva – acusava um capataz. – Até me admiro de que não leve o penico… - Cala a boca, malcriado! – atalhava outro, com um olhar para as senhoras. - Então, até já! – despediam-se os que partiam. - Boa sorte! – agouravam os que ficavam.

Todos a afectar descontracção. Todos a mentir, com vergonha da aguda sensação de perigo, que lhes apertava o coração… E mal o grupo da sortida se perdia além daquela curva da estrada até onde costumavam chegar os terroristas, nas sua batucadas de ameaça ou de chacota, os homens emudeciam, cabisbaixos, e as mulheres arrastavam consigo as crianças para junto de alguma imagem da Virgem Santa a quem rezassem.

*

- Olhos bem abertos e bico calado! – recomendava nessa noite o Subchefe da Polícia, que encabeçava o grupo da água. – Quanto menos barulho, melhor! - Odeio o papel de mudo! – resmungou o Lopes. - Ainda é pior o papel de morto… - replicou o Subchefe. - A esta hora, devem estar a dormir – lembrou o Secretário Administrativo. – Eles não precisam de passar as noites em claro, como nós. Sabem que os não podemos atacar…

- Pois, se todos fossem da minha opinião – afirmou o Pegado – enganavam-se na sabedoria. Por mim, já lhes tínhamos caído em cima, numa lição à antiga portuguesa. - Quem te ouvir falar, há-de supor que comandas uma bateria de artilharia… chasqueou um comerciante. - Para esta canalha não são precisos canhões – teimou o Pegado. – Até à mocada se varriam! - Schiu!... – sibilou lá na frente o Subchefe. – Vocês têm muito empenho em despertar a malandragem?!...

Calaram-se os faladores, reconhecendo que Subchefe tinha razão e sábio o que fazia. Era a sétima vez que iam à água, sempre a horas diferentes, para desorientar o inimigo. A sortida anterior tinha sido às duas horas da manhã. Esta começava às onze da noite. Era natural que os terroristas estivessem efectivamente a dormir…

Em fila indiana, pelo carreiro afogado em capim, continuaram a descer até ao rio, agora num silêncio absoluto. Em silêncio encheram rapidamente os recipientes que levavam. E em silêncio iniciaram o caminho de regresso.

Já estavam quase a dobrar a curva que volta para a vila, quando o Pegado, que fechava o cortejo de aguadeiros, avistou um vulto a avançar por entre o capim. Rápido como um gano, saltou sobre a coisa, despejou-lhe em cima o seu balde de água e, percebendo sob o zinco uma cabeça de negro, bradou furiosamente: - Ah, malandro, que me estragaste a minha água!

A muito custo lhe arrancaram daquele abraço terrível um preto robusto e alto, que atabalhoadamente largara uma carabina F.N. Bem atado em redondo, como um paio, o terrorista foi conduzido até ao edifício da Administração, onde o interrogaram, em apertado requisitório. De carranca taciturna, o bandido não tugia nem mugia, fechando-se num silêncio obstinado. - Olha, menino: - rugiu o Pegado, já com a paciência perdida. – Estou com uma vontade de te espevitar a língua, que nem fazes ideia! Vê lá se queres… - Je m’en fous!... – grunhiu finalmente o bandido. - É um melro vindo do Congo ex-belga! – concluiu o Secretário Administrativo.

*

O «melro» do Congo ex-belga acabou por cantar, que não teve outro remédio. E, respondendo em francês arrevesado às perguntas que na mesma língua lhe foi fazendo o secretário administrativo, confirmou o que todos suspeitavam: que havia muitos milhares de terroristas à roda de Santa Cruz; que esperavam que Ávila se rendesse pela fome; e que o chefe daquele bando era um negro de Luluaburgo, que fora amigo de Lumunba e trouxera, numa carrinha, uma dúzia de carabinas cedidas pelos soldados tunisinos da Onu.

Perdoaram-lhe a vida com uma condição: teria de acompanhar os homens da vila, durante as perigosas sortidas para reabastecimento de água. Devia guiá-los pelo caminho mais seguro e às horas mais convenientes. Se fossem atacados, a primeira bala seria para ele.

Prometeu, abanando simplesmente a cabeçorra quadrada. Mas no dia seguinte, já não estava no cubículo onde o tinham fechado. Procuraram-no por todos os recantos da vila. Acabaram por o encontrar tombado numa das veredas que conduziam à mata. Tinha um enorme lanho de catana em plena testa. E nunca ninguém soube quem o matou…

Assim se viveu, durante mais de três meses, em Santa Cruz de Cacocola. Até que, ao abrir do mês de Julho, num claro dia de sol, alguém rompeu a correr pela única rua da vila, gritando alvoroçadamente. - Está a chegar a tropa! Está a chegar a tropa!

Toda a gente veio para a rua. Homens, mulheres e crianças correram para a entrada da vila. Pálidos, sujos, emagrecidos pelas privações de toda a ordem, com os rostos marcados pela contínua angústia daqueles meses, mas transfigurados pela indizível alegria de se verem finalmente libertos do longo cerco.

Corriam a peito descoberto, irrequietos e alegres como crianças, já esquecidos de todos os sofrimentos e de todos os perigos. Sabiam que os terroristas continuavam próximos, embora prudentemente escondidos nas matas. Mas quem pensava agora nos terroristas? Chegava finalmente a tropa. Os habitantes de Santa Cruz estavam salvos!

Havia mulheres com meninos ao colo e os filhos mais crescidos pela mão. Outras sobraçavam ramos de glicínias para atirar aos soldados. Os homens fitavam ansiosamente aquela curva da estrada, que marcava, desde 15 de Março, a fronteira entre a vila e os terroristas.

- Lá vêm eles! – anunciavam várias vozes, num brado de incontível entusiasmo.

Da espessura da floresta surgiam, efectivamente, rodando a pequena velocidade, os primeiros «Unimogs». E um grande coro de aclamações se ergueu até ao céu, numa estupenda explosão de entusiasmo e de solidariedade lusíada. Os carros vinham carregados de alegres rapazes, quase todos naturais de Lisboa, de Santarém, de Vila Franca de Xira, de Almada, das vilas e aldeias ribeirinhas do saudoso Tejo. Pertenciam à artilharia, mas vinham equipados apenas com armas ligeiras. Tinham partido de Luanda a 13 de Maio, integrados numa enorme coluna, que se formara ao longo de muitos quilómetros da estrada de Catete. Durante a marcha de quase dois meses, milhares de camaradas tinham ficado para trás ou seguido outros caminhos, na estupenda imensidade do noroeste angolana, obliquando para a Damba e Maquela do Zombo, reforçando a guarnição de Sanza Pombo, prosseguindo para Quimbele e Sacandica, recuperando uma a uma, todas as povoações que a escassez de efectivos militares inicialmente tinha obrigado a abandonar.

Com os artilheiros, vinha um homem de idade, meão de altura, magro e desempenado, com a barba e o cabelo duma brancura de neve. Sobre a farda de sargento, ostentava condecorações das campanhas do Sul de Angola. Era o sargento Rocha. Veterano do General Pereira de Eça, tinha-se oferecido, em Luanda, para guia dos soldados do General Silva Freire.

Ao entrar agora em Santa Cruz de Macocola, aquele velho chorava de alegria. E a sua comoção pegou-se a todos os presentes: aos da vila e aos que chegavam em seu socorro: aos artilheiros, aos guardas da Polícia e aos civis. Todos tinham os olhos marejados de lágrimas.

Alguém lembrou, então, que se substituísse, por outra nova, a bandeira velhinha e esfarrapada que, desde 15 de Março, nunca mais fora arreada do mastro da Administração.

- Não senhores! – protestou um dos homens mais velhos de Santa Cruz. – Não toquem na nossa Bandeira! E toda a gente compreendeu. Tinham-na defendido durante mais de cem dias. Aquela Bandeira, com o pano roto e as cores comidas do sol e do cacimbo, içada dia e noite durante mais de três meses, na mais nova, mais pequena e mais isolada vila do Congo Português, constituía um símbolo sagrado de vitória: duma das mais incríveis vitórias da batalha de Angola…